A banalidade do mal e o livre arbítrio

Por Adriana Tanese Nogueira

Hannah Arendt (1906-1975), filósofa e teórica política alemã, em seu livro "Eichmann em Jerusalém" adicionou um subtítulo que fez história: "Um relato sobre a banalidade do mal". Eichmann foi um SS da Alemanha nazista e um dos principais organizadores do Holocausto. Sua função era administrar a logística das deportações em massa dos judeus para os guetos e os campos de extermínio no Leste Europeu durante a Segunda Guerra Mundial. Graças ao seu trabalho milhões de judeus e discriminados foram assassinados. Em 1961, houve o julgamento de Eichmann em Jerusalem. Arendt presenciou às sessões que duraram meses, publicando relatos no New York Times, jornal para o qual escrevia. De frente para o inimigo nazista, Arendt se deparou com um indivíduo que não apresentava traços antissemitas ou características advindas de um caráter distorcido ou doentio. Ela observou que Eichmann agiu segundo o que ele acreditava ser o seu dever. O objetivo do oficial era fazer carreira e assim cumpria as ordens sem questionar e com o maior zelo. Não se perguntava sobre o que ele estava fazendo. Questões da ordem do Bem e do Mal não o tocavam, não lhe diziam respeito. Que homem é este? Um dos maiores axiomas do cristianismo desde suas origens é o conceito de "livre arbítrio". Poder escolher, aliás, ter que escolher, é a característica do ser homem. Homem é aquele faz uma escolha porque ele tem escolha. "Tem escolha" - em teoria. Porque para se ter escolha é preciso ter consciência, ou seja, ter consciência de si como indivíduo distinto da massa, do grupo e não identificada com uma autoridade alheia. Para ter consciência é preciso tomar consciência o que só ocorre após aquela coisa que muitos temem que se chama questionar. Questionar corresponde a duvidar de algo dado, fazer perguntas para entender, para saber mais, para avaliar... Ao fazer funcionar o próprio cérebro (sem pegar emprestado o cérebro de algum outro sujeito), um indivíduo necessariamente vai começar a inquirir e a querer saber. Se desejar pensar por si terá que avaliar por si mesmo as razões, os porquês e os "se". Isso se chama liberdade de pensamento. A liberdade de pensamento é a condição indispensável para a "hominação", o fazer-se homem. Mas pensar não é fácil. Pensar é trabalhoso, por isso, escreveu C. G. Jung, as pessoas preferem julgar no lugar de pensar - ou nem isso, simplesmente acatar ordens e agir como autômatos. Pensar é um termo que deriva do latim "pensum" que é o particípio do verbo "pendere": "pesar". Referia-se a uma certa quantidade de lã que era pesada para depois ser encaminhada para a fiadeiras que haveriam de tratá-la. O pensar era, portanto, a matéria prima que apontava metaforicamente a algo que havia de ser tratado e elaborado, recebendo assim uma nova forma. Imaginem o trabalho! A atividade do pensamento vem antes das coisas pensadas e corresponde ao trabalho de pensá-las, pesá-las, avaliá-las, contemplá-las sob vários aspectos e diferentes lentes, questioná-las, reconsiderá-las. O pensar produz pensamentos compostos, tridimensionais no mínimo. Pensar permite enxergar a complexidade da realidade. E aqui nos deparamos com "O Problema". Enxergar a complexidade da realidade é para espíritos fortes. Só quem tem estrutura psíquica estável e minimamente madura, sabe conviver com o sim e o não, o branco e o preto, o talvez e o quem sabe, ou seja, com as muitas facetas que compõem o real. Para as crianças oferecemos um mundo simplificado porque elas não possuem desenvolvimento cognitivo e emocional suficiente para captar a verdadeira face do mundo. Elas precisam se escorar no adulto e em sua visão de mundo. Necessitam de um líder para seguir no qual tenham confiança para não ter que se questionar a toda hora sobre o que fazer e como fazer, já que lhes falta dados e condições para tomar decisões conscientes e maduras. E é assim que encontramos crianças de 5, 10, 18, 30, 40, 50 e 60 anos delegando a responsabilidade sobre seu livre arbítrio consciente para indivíduos que lhes dizem o que é o bem e o mal para que elas não tenham que decidir com suas próprias cabeças. Simplificam a vida para poder continuar, como as crianças, a fazer "suas coisas", deixando que os adultos da casa cuidem "dos problemas da vida". E é assim que chegamos a fazer do mal uma banalidade, tolerada como se tolera o papai bebendo na sala, a mamãe gritando na cozinha, o vizinho tocando nossos genitais, as crianças abandonadas na rua da frente, a sujeira das calçadas, as mentiras dos amigos, os preconceitos da escola, os gritos dos animais, o cinza do céu, as balas perdidas e o lixo na praia. Não precisamos saber tudo, seria impossível. Mas podemos saber do que está à nossa volta e neste pequeno contexto, nessa grama de realidade que nos pertence agirmos como indivíduos pensantes livres e, portanto, responsáveis. Basta isso para exterminarmos a banalidade do mal.