A confusão dos diabos

Por Adriana Tanese Nogueira

duvida

Dia-bolos, do grego antigo, quer dizer dividir. O diabo é quem divide. Mas o diabo é também filho de Deus, senta à mesa redonda divina – lê-se no livro de Jó do Antigo Testamento. O que significa então? O que o diabo é filho de Deus? Significa que dividir faz parte do projeto divino. E o que é dividir? Dividir é o ato necessário para distinguir, o que é indispensável para separar o joio do trigo. Saber discriminar é o requisito indispensável para quem quer pensar com clareza e ter a consciência limpa.

Mas dividir dói. Rompe a harmonia, ou melhor, quebra a ilusão de harmonia, porque inserimos um elemento novo, a dúvida, outro ponto de vista, e isso perturba o status quo. E gera desconforto. A vida biológica tende ao equilíbrio, ou seja, à entropia, que em física é a tendência natural dos sistemas quando deixados a si mesmos: estabelece-se o equilíbrio e com ele a morte térmica. Dizem que é para lá que o nosso universo vai... se não fosse pela consciência humana.

A consciência nos transforma em seres capazes de assumir a dor da ruptura por motivos maiores e mais elevados do que a tendência à manutenção do status quo por preguiça mental ou desconforto emocional. Porque quem tolera o que precisa ser discriminado e posto às claras está endossando a “confusão dos diabos” – que é outra coisa.

A “confusão dos diabos” é uma condição na qual os diabos, por assim dizer, tomaram a diantera e comandam o espetáculo. O que significa isso? Significa que se uma pequena dose de “diabolicidade” é indispensável para manter e fortalecer a união, muita produz aquela tempestade de areia na qual nada mais se enxerga fora milhões de grãos de areia e em movimento caótico. Quem usa esta arma é quem perdeu o rumo daqueles motivos mais altos e elevados do qual falávamos antes, pois o que o que o norteia é algo pessoal, não assumido. Logo, a confusão é conveniente.

E ela é semeada de forma sutil, disfarçada, pode até ser agradável. É confusão que desnorteia a lucidez, que põe razão contra sentimento, aparências contra percepção, intuição contra coletivo, o visível contra o invisível, a dúvida boa contra a dúvida destruidora. E assim estabelece-se na cabeça da pessoa ou no grupo uma confusão dos diabos: nada mais é claro, nada mais é seguro. A desconfiança domina e com ela se perdem os laços.

Pior do que nos grupos é quando a confusão dos diabos se instala dentro da gente e isso ocorre nos tempos das grandes transições que são, na verdade, mutações: quando antigos paradigmas precisam ser superados, mas mantêm ainda nas nossa alma que almeja o salto além. Todos os fantasmas, as experiências do passado, as vozes dos ancestrais, os medos e inseguranças, conhecidos e desconhecidos, afloram e se degladiam entre si. Confusão dos diabos: cada um falando uma coisa, deixando a pessoa numa gangorra, às vezes, insuportável lançada no mar cheio de sereias que ora parecem cantar o sim, ora o não, ora o certo,  ora o errado. E somos tomados pelo desnâmino.

O que fazer? Aquilo que se faz numa tempestade de areia. Recolher-se (estar em si e a sós), encolher-se (calar ao máximo a algazarra intera e evitar ouvir a falação dos outros), baixar a cabeça (humildade e força para aguentar não ter ainda a solução), fechar os olhos (para olhar para dentro de si), segurar-se firme (no invisível, na esperança) e aguardar vigilantes, desenvolvendo o guerreiro interior.

Avançar firmes sem ceder: a confusão dos diabos passa se não nos entregarmos a ela e se nos empenharmos em nosso trabalho interior.