'A democracia no México corre perigo'

Por Gazeta Admininstrator

Engenheiro que se converteu em historiador, o mexicano Enrique Krauze, de 58 anos, é um dos maiores intelectuais da América Latina. Entre 1977 e 1996, trabalhou com Octavio Paz na revista Vuelta. Ao todo, nos últimos 30 anos, publicou mais de 15 livros, vários dos quais tornaram-se clássicos (entre eles, Siglo de Caudillos, Biografia del Poder e Travessia Liberal). No momento, a grande preocupação de Krauze é a democracia mexicana. Durante mais de sete décadas, o país foi dominado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI). A rigor, as primeiras eleições genuinamente democráticas aconteceram em 2000, com a ascensão de Vicente Fox , do Partido Ação Nacional (PAN). Para Krauze, as eleições presidenciais de julho são as mais importantes em quase cem anos e o perigo não é mais o PRI. A ameaça chama-se Andrés Manuel López Obrador, o candidato do Partido da Revolução Democrática (PRD), líder nas pesquisas de opinião. Atualmente na direção da Editora Clío, Krauze conversou com o Estado em duas ocasiões (por e-mail e pelo telefone) ao longo dos últimos 30 dias e explicou por que teme pelo futuro do México.

Muitos falam de uma virada à esquerda na América Latina. De todos os países onde isso poderá ocorrer este ano, o mais importante é o México. Quais são as possibilidades de que López Obrador conquiste a presidência?

A política é o teatro mais rápido do mundo. Tudo pode ocorrer. Mas neste momento, creio que as possibilidades de vitória de López Obrador são altas. Ele é um político sagaz, absolutamente honesto no plano pessoal, tem uma ambição muito profunda e um certo sentido messiânico do poder. Tem penetração e força de atração entre as classes populares da ampla zona central e sul do país, e entre intelectuais, profissionais e estudantes de esquerda. A direita e a direita moderada o repudiam. Nós, os liberais, democratas de centro, percebemos nele virtudes, mas também graves carências políticas. É um populista, mas não é cínico: acredita de verdade que é dotado de qualidades providenciais que lhe permitirão combater a pobreza e a corrupção e acabar com as injustiças. Eu o vejo como uma personagem que é preciso estudar mais pela sociologia religiosa que pela sociologia política. Vocês no Brasil já tiveram lideranças messiânicas e sabem do que estou falando.

E as idéias dele são factíveis?

Muitas delas não são. Ele disse que vai economizar US$ 10 bilhões cortando postos e salários da alta burocracia, mas as contas não batem. Os 8 mil burocratas que ganham US$ 200 mil dólares por ano somam US$ 1,6 bilhão. Se cortasse a metade - algo improvável -, chegaria a US$ 800 milhões. De onde extrairia os US$ 9,2 bilhões restantes?

Se López Obrador vencer, estaremos diante de um novo Hugo Chávez, o populista presidente da Venezuela?

Estaremos diante de um fenômeno novo: um líder social populista com atitudes messiânicas. O problema de López Obrador é a sua desconexão com a tradição liberal clássica - divisão de poderes, Estado de direito, liberdades individuais, defesa da pluralidade e da diversidade. Ele tem um traço perturbador, o de quase não ter viajado para fora do México. E, como disse Bertrand Russell, contra a intolerância só há um antídoto: viajar. Isto é, ver outras realidades, comparar. Há uma verdade existencial e filosófica profunda nessas palavras. Tenho a impressão de que, através de mobilizações populares e atraindo a ala esquerda do PRI, López Obrador chegaria em pouco tempo a reconstituir o velho sistema político mexicano, que concentrava um poder absoluto no presidente. Com uma agravante: o antigo sistema tinha limites temporais - o mandato durava seis anos - e a lealdade não era à pessoa do presidente mas à instituição presidencial. Com López Obrador, a lealdade seria à pessoa dele - como em todo regime populista - e, por este motivo, creio que poderia ter a tentação de prolongar o mandato além dos seis anos.

Qual é a relação entre Chávez e López Obrador?

Não parece haver vínculos abertos. Há simpatias por Chávez em seu partido, o PRD. Por outro lado, a esquerda acadêmica, intelectual e jornalística do México é muito pró-cubana e pró-Chávez. De modo que há convergências tácitas.

Quem são os demais candidatos?

Roberto Madrazo é o candidato do PRI, o velho partido hegemônico do México. Ele tem uma grande rejeição porque encarna, na visão dos eleitores, os defeitos do seu partido. Felipe Calderón, do PAN, é um magnífico candidato. É um liberal jovem, um parlamentar muito experiente. É representante de uma nova geração de políticos mexicanos. As eleições deverão ser disputadas entre Calderón e López Obrador. Este ano será o mais importante para a democracia mexicana em quase um século.

Por quê?

Será a primeira vez que poderemos referendar a democracia. Ela teve início no ano 2000 e é muito frágil. Eleições livres e limpas, o respeito às instituições e às leis são novos. E o futuro político do México dependem dessas eleições.

O perigo para a democracia vem apenas da esquerda?

Não acho que a esquerda seja um perigo para a democracia. O PRD tal como está configurado e a figura de López Obrador, em particular, me preocupam porque poderemos voltar a ter um partido hegemônico como era antes o PRI, mas com um líder carismático muito forte. E isso é um perigo para a democracia. Numa situação dessas, não haveria limites para o poder presidencial. E isso é muito grave. O maior perigo para a democracia mexicana neste momento é a possibilidade de que o velho sistema político se reconstrua. Não com o PRI, que nunca mais terá uma maioria no México. Mas o PRD pode chegar lá.

Que lugar Vicente Fox terá na história? O fraco que não soube governar, ou o grande estadista da transição entre uma ditadura de fato e a democracia?

Como Lech Walesa na Polônia: um líder da transformação política que libertou o país, mas um político medíocre, inexperiente, errático, indeciso, irresponsável.

Fala-se muito das semelhanças entre o Brasil e o México. Na sua opinião, quais são as principais?

Neste momento, o Brasil me parece - apesar de todos os seus problemas - um país mais aberto, mais seguro de si, mais forte, e com a imensa virtude, que os brasileiros não apreciam o suficiente: o país não tem uma mitologia revolucionária em seu passado. O Brasil nasceu de um pacto, não de um trauma de rompimento e violência. O México não tem, neste momento, um rumo claro. E penso que há grandes possibilidades de que tome o caminho da Argentina ou da Venezuela, o que seria uma lástima. O México tem recursos de muitos gêneros - além do petróleo. Tem sol, praias e história para atrair o turismo; tem gente capaz e capacitável, disposta a trabalhar e a competir, como provam os 20 milhões de mexicanos que vivem nos EUA e mandam US$ 16 bilhões em remessas para o México. Mas a classe política mexicana falhou terrivelmente. É uma classe mesquinha, ignorante, sem visão. E um setor decisivo dela - estreita ou anacronicamente nacionalista, preso aos mitos do passado - pode levar o país a um isolamento que levaria décadas para consertar. O que seria irreparável. Enquanto a Índia, a Irlanda, o Chile, a China marcam a pauta do crescimento acelerado, o México poderia perder para sempre o trem da modernidade. E nós mexicanos não merecemos isto.