Amor, Sexo e Canibalismo - Viver Bem

Por Gazeta News

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Os povos “primitivos” reconheciam no animal e nas plantas que comiam um poder. De fato, o alimento tem poder: minerais, proteínas, vitaminas, líquidos e fibras são poder, o poder de nos manter em vida. Secularizamos esses materiais, mas quem já experimentou a mágica da “ressurreição” física após comer algo quando se está faminto, e parece que estamos perdendo todas as forças, vai entender porque a comida foi historicamente (e no presente de ainda muita gente) considerada divina, portadora do numinoso. De fato, ao ingerir alimento, ingerimos vida. Mais vida = mais poder (poder de viver).

Contudo, os nutrientes, que hoje chamamos de “químicos” não constituem o único poder que a comida traz. Apesar do desconcerto dos materialistas de mente estreita, é do ser humano a dimensão da profundidade, que acessamos pelo símbolo. Vivemos de símbolos: dinheiro é símbolo, corpo perfeito, namorado/a, cabelo, sapato, carro são símbolos. Tudo isso não é simplesmente o que parece mas o que representam para cada um e para o mundo no qual cada um vive. Também a comida é símbolo, apesar de hoje ter se tornado para muitos nos países ricos um vício e um passatempo. Os povos “primitivos” comiam determinados animais para obter o poder deles: o poder da coragem da onça, o poder da força do urso, o poder da visão da ave. Animais eram comidos e lhe se reconhecia o poder que simbolicamente traziam para dentro do nosso corpo humano, isto é, para nossa alma ou psique.

O canibalismo ritual surgiu (entre alguns povos) como forma da comunidade ingerir, se apossar, pegar para si o valor de um guerreiro. Não se comem os covardes, os preguiçosos e os vagabundos. Só se introjeta, se bota para dentro, gente que se admira. No famoso parricídio pensado por Freud como fundação da civilização, o que é comida não é a carne macia e temperada do velho chefe, mas o poder e a autoridade do patriarca, para que essa função passe então a seus descendentes e herdeiros.

Hoje em dia, não se comem pessoas. Comemos galinhas, porcos e bois, verduras e frutas sem qualquer sentimento do numinoso, sem qualquer agradecimento. Jogamos fora o que sobra e cozinhamos demais, sem qualquer consideração pelo valor simbólico e até mesmo nutricional da comida.

E passamos a comer gente em outro plano.

Há encontros entre duas pessoas que são “mágicos”, porque carregados de algo especial, como se houvesse um pozinho misterioso que funciona como imã. Nos sentimos atraídos por aquela pessoa e a queremos para nós. Muitas vezes, não se sabe quem é aquela pessoa, o que faz, o que vale realmente. Mas algo em nós foi despertado, como uma sede violenta que exige ser satisfeita. Precisamos “trazer para dentro”, nos “apossar” do outro, ou melhor, daquilo que o outro representa. E o que fazemos? Vamos pra cama com ele/a. Mergulhamos no sexo. É como alguém que está com carência de ferro e de repente lhe dá uma ganância enorme de comer feijão. Comerá feijão porque é o que conhece ou porque o prato já está na mesa. Mas poderia comer fígado no lugar, ou outro alimento que contenha o ingrediente que justifica o desejo. Assim, muita gente tem sexo com fulano ou sicrana porque fulano e sicrana pintaram naquele momento e naquele lugar contendo o elemento do qual se precisa para o próprio equilíbrio (físico ou psíquico, que diferença faz?).

Se a sede perdurar, se por assim dizer a anemia for muito grande ou, então, numa situação mais produtiva, se a outra pessoa condensar em si não só um, mas vários nutrientes importantes para nosso organismo (psicológico), então o sexo vira “amor” e sobrevive ao “ficar”. Estaremos amarrados à relação até que a carência do nutriente não for saciada. Então, finalmente, um dia os laços que nos amarram são soltos porque não precisamos mais daquele(s) nutrimento(s). Saciados e reconfortados, teremos agora que forçar a saída, ou morrer por intoxicação de ferro.

O único problema com modo de se “equilibrar” é que para obter o alimento (psicológico e simbólico) necessário, podemos cair em tantas complicações e causar tantos transtornos a nós mesmos e aos outros que pode ser preferível comprar o pote de vitamina na farmácia. Muitas das confusões que escolhas baseadas em carências interiores provocam, demoram uma vida inteira para serem resolvidas.

Há relações que prosperam com um pouco mais de troca consciente e menos sexo automático. Há encontros que promovem o desenvolvimento individual sem ter que passar pelas consequências pegajosas de relacionamentos que não têm raízes sendo são o resultados de carências nutritivas agudas ou circunstanciais.

Sempre desconfio de quem não sabe ficar sozinho/a, mas corre de namorado/a em namorado/a como aqueles cães subnutridos que revistam qualquer canto em busca de alimento. Pode ser o único jeito de sobrevivência para quem está muito faminto, mas certamente não é a condição para criar relacionamentos que não sejam de canibalismo, mas de troca criativa e desenvolvimento recíproco.

*Adriana Tanese Nogueira é psicóloga. www.ATNHumanize.com