Armas e urnas

Por Cristovam Buarque

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Diante da violência generalizada por bandidos armados, os eleitores foram às urnas para eleger um candidato que defendia autorização para facilitar a posse de armas. Com a ilusão de que arma guardada em casa impede bandido, o eleitor teve razão no seu voto, e o presidente eleito, comprometido com sua promessa, tem razão em cumprir seu compromisso. As urnas pediram armas. Os eleitores sempre têm razão, mas nem sempre estão certos. A razão vem do clima de desconfiança e do desespero, mas estar certo depende dos resultados que serão obtidos: nada indica que o armamentismo vai reduzir a violência no presente, e tudo indica que vai trazer consequências negativas no futuro. Precisamos de polícia armada para nos defender, não de nos armarmos para reagir a ruídos na porta, desentendimento no trânsito, rejeição de atendimento a um familiar doente nas portas de hospitais. Em outubro, armas e urnas casaram, mas não darão bons frutos. Um mínimo de lucidez sem demagogia permite imaginar os negativos resultados do armamentismo individual: aumento no desprezo e na falta de respeito aos policiais e soldados; mais armas nas mãos de bandidos que se dedicarão a roubar pessoas de que eles desconfiem ter armas; pessoas decentes que em momento de raiva se transformarão em assassinos; risco de nas mãos de crianças de famílias descuidadas provocarem tragédias definitivas. Autorizar posse de arma não combate a violência, expande-a, leva-a para dentro de casa, nas mãos de menores curiosos, de maridos violentos, de vizinhos nervosos. Num tempo em que não se confia na polícia e nos policiais, nem em outras forças armadas e profissionais da segurança, o eleitor votou no que lhe parecia ser o melhor caminho para se defender. O eleitor iludido tem razão, mas comete um equívoco; o governante ilude e compromete a segurança, no lugar de enfrentá-la. A solução correta seria recuperar a confiança do eleitor na polícia e nas forças armadas, mas preferiu-se a solução simplista e demagógica de concordar com o cidadão para manter o desprezo à polícia e assumir o papel de defender pessoalmente a si e sua família. O voto foi democrático, o presidente cumpre sua promessa de campanha, mas eleitores e ele estão errados, porque em política nem sempre ter razão é estar certo. Ter razão vem dos argumentos que ouvimos e nos convencem, estar certo decorre dos resultados positivos que ocorrerão em função da decisão tomada. Pior é que esse armamentismo dificilmente será revertido. Uma vez armados, brasileiros nunca mais serão desarmados. Os que têm dinheiro para comprar armas e balas vão adquirir o direito e, no Brasil, direito adquirido fica pétreo para os ricos. Não faltarão políticos demagogos e populistas para serem aplaudidos ao proporem juros baixos para os pobres comprarem armas e “bolsas-bala” para municiá-las. Além disso, medidas simplistas como essa tendem a impedir debates sérios. Iludem, ofuscam e fogem de perguntar por que o país que antes instigava pela tolerância agora intriga por substituir o diálogo pela intolerância; agora transforma as divergências em disputa, brigas, guerras. Não se debate como foi possível manter a persistência da pobreza ao longo de décadas, sem renda suficiente, água, esgoto, cultura; como deixamos nossas cidades se transformarem em “monstrópoles”, no lugar de metrópoles; como perdemos o controle e deixamos continuar o desmatamento da Amazônia, a contaminação dos rios, a sujeira nas ruas; sobretudo não nos perguntamos por que ficamos violentos, achando que o problema decorre da falta de armas nas mãos dos cidadãos e não do excesso delas na sociedade desigual, descontente, desconfiada. No lugar de entendermos o porquê da violência e como construir harmonia, estamos preferindo iludir o eleitor com a demagógica e grosseira falta de lucidez de que mais armas constrói paz e reduz mortes.