Carta de um imigrante indocumentado
Ao longo de duas décadas trabalhando e interagindo continuamente com os imigrantes brasileiros nos Estados Unidos, tenho acompanhado de perto a “montanha-russa” de sentimentos, aspirações, conquistas e frustrações que caracterizam a vida do imigrante indocumentado.
Insisto, inclusive, em chamar o imigrante ilegal de indocumentado e explico o porquê. Sei, por A+B, que o imigrante que entrou ou permaneceu no país sem a devida autorização, é, inquestionavelmente, um ilegal. Mas o peso da alcunha “ilegal” me soa como mais um instrumento racista e excludente. O uso desse termo, que em si nada teria de cruel, acaba sendo uma ofensa grave, na medida em que coloca lado a lado aqueles que saem de sua terra –natal em busca do mais legítimo e original dos sonhos: o de ter uma vida melhor e ser feliz.
Ao longo desses quase 20 anos, como já disse, poucas vezes recebi uma carta como a que vocês lerão abaixo. O conteúdo me tocou de forma muito especial e senti-me na obrigação de publicá-la, pelo que esse texto representa de lição de vida, esperança, fé em sua própria convicção de vida e determinação em busca de seu sonho.
“Prezado Senhor Borges
Nós aqui em casa gostamos muito de ler o que o senhor escreve. Lemos bastante os jornais e revistas da nossa comunidade. Eles são a nossa fonte de informação e nos mantém sempre muito perto de nossa terra e nossa gente.
Estamos aqui há mais de dez anos. Primeiro eu vim, sozinho, sem a minha esposa. Estava desesperado no Brasil, sem emprego, sem perspectiva, e morando num Rio de Janeiro que eu amo, mas que me negava o simples direito de sair de casa sem temer as seqüelas de uma violência incontrolável e, hoje, banalizada pela própria população.
Desde a primeira semana que cheguei aqui na Flórida fiz de tudo, até limpeza de casa. Pouco a pouco trouxe os meus. Minha esposa, meus quatro filhos e, até, de lambuja, dois sobrinhos, uma irmã e meu cunhado. Formamos uma pequena e unida família carioca na região de Kendall, onde vivemos até hoje.
Só comecei a levar a sério a questão da legalização quando já estava há uns dois anos aqui. Até 2005, gastamos mais de $40 mil na tentativa de obter qualquer tipo de visto. De todos, do nosso grupo, apenas dois conseguiram alguma forma de legalização.
Desde 2001, as coisas vêm piorando bastante. A pressão ficou quase que insuportável quando as nossas carteiras de motorista expiraram em 2007. Minha esposa trabalha fazendo doces e salgados e faz as entregas. Essa renda é bastante significativa para o orçamento de casa. Como ela é muito medrosa, passou a ficar extremamente estressada diante da possibilidade de ser flagrada na direção sem documentação e pior, ser até presa pela imigração.
Moramos numa vizinhança de hispanos. Eles são bastante amigos. Mas hoje, a insegurança é tão grande que tememos que nossos próprios vizinhos possam nos denunciar. Sei que parece exagero, mas o medo faz a gente ver inimigos onde eles nem existem.
Lendo nos jornais e nos artigos como os que o Sr. escreve, que alguns brasileiros estariam desistindo do sonho americano, eu pensei bastante e cheguei à conclusão que, por mais dificuldades que estejamos enfrentando, vamos vencer essa batalha. Sei um pouco da história dos Estados Unidos. Acompanho a política e os noticiários da TV americana. Sinto que a legalização acontecerá e até pode ser mais cedo do que muitos imaginam. Não deixo a insegurança, o medo e os inconvenientes dessa situação de ilegalidade destruírem o que eu sempre quis, que foi viver numa condição de vida melhor, sem violência, com a lei protegendo a mim e a minha família.
Sei que parece absurdo que um ilegal faça a defesa absoluta da Lei. Mas não tem nada de absurdo nisso não. Nós, ilegais, queremos que a lei seja respeitada. Viemos para cá por muitas razões, uma delas por saber que neste país o trabalho do ser humano, seja ele quem for, é respeitado o valorizado. Mas não devemos abrir mão do sonho pelo qual lutamos e entregamos nossas vidas. Os que estão desistindo, por qualquer razão que seja, de seu sonho por uma vida melhor, nadaram, nadaram e morreram na praia.
Eu e minha família acreditamos que a solução para nossa residência legal está mais perto do que nunca e fizemos um pacto de seguir trabalhando duro, com fé em Deus e a certeza de que vamos celebrar juntos a conquista desse obletivo que nos trouxe para cá.
Agradeço ao senhor suas constantes palavras de apoio aos brasileiros ilegais. O Sr. nos faz sentir que não estamos sozinhos. Os jornais e revistas brasileiros nos fazem sentir que temos alguém ao nosso lado. Por isso lhe escrevi e abri meu coração. Muito obrigado.
P.M.P (Engenheiro, 54 anos, carioca da gema, mas apaixonado pela Flórida e pela vida que estou construindo com a minha família aqui nos Estados Unidos)”.
