Falta de gente

Por Por Roberta Dalbuquerque

vida

Marcamos às 8h. Em ponto, ela disse antes de desligar o telefone. A confirmação do horário, uma pausa pequena e a ameaça do “em ponto”. Isso desde 2000, quando passei a frequentar a mesma
casinha branca e azul da Ferreira de Araújo. Primeiro porque ficava tão pertinho do trabalho e, de
certa forma, da minha casa também. De casa, pertinho, assim, de ir a pé. Mas de chegar suada se
fosse verão e com a garganta arranhando se tivesse frio. Do trabalho, era mesmo do lado.

Naquela época, marcávamos às 12h30. Eu aproveitava o almoço pra fazer de um tudo, doida pra me
livrar do escritório. Durante mais de um ano, embora não tivesse interesse algum por linhas e
agulhas, fiz um curso de costura na singer do Largo da Batata, toda terça e quinta. Era maravilhoso.
Só tocava rádio AM e não havia uma única colega menor de 60 anos. Fiz pilates, natação, inglês,
musculação. Qualquer coisa que coubesse das 12h30 atè as 13h30. Comia em meia hora e voltava
para o computador, jurando que era dona do meu tempo. Tadinha.

Segundo porque embora houvesse o barulho do motorzinho, ela nunca, nunquinha passava do “e
como estão as coisas com você?”. Eu já de boca aberta, fazia um legal, fechava o olho e deixava
motor, espelhinho, sugador e qualquer outra coisa necessária à tarefa, agir sem interrupção. Um
hora deitada, em silêncio, demanda zero, olhos fechados no meio do expediente. Era perfeito.

Até que ela engravidou e resolveu fazer uma pausa para cuidar do bebê. Do meu lado, saí do
trabalho, mudei e perdi o plano de saúde odontológico. Era o fim. Ponto. E eu procurei outros
dentistas aqui perto, dos que não precisava nem suar para chegar ao consultório. Mas eles
atrasavam, falavam horrores, teve uma que me pediu pra segurar o sugador, como assim? E a real é
que nenhum deles era a dra Débora.

Voltei faz uns três anos. E, embora agora não haja mais nem sombra de silêncio, ela me conte cada
detalhe da escola, da tarefa, das gracinhas, das descobertas do Leo, que já nem é um bebezinho, não
mudo de dentista nem a pau. Semana passada, quando desmarcamos de novo nosso encontro - os
números de infectados e mortos voltaram a subir bastante por aqui - às 8h, vocês sabem, em ponto,
pensei nessas relações que vamos construindo com o tempo. Pode parecer que são os muito
próximos que nos nutrem, mas é também delas que somos formados. Me preocupei com a dra
Débora quando a pandemia começou, pensei no Leo, que ano passado estava gostando tanto da
professora nova, lembrei também da Tati, com quem eu pintava as unhas às sextas-feiras, do
coordenador da escola das meninas que estava tão empolgado om os eventos do fim do ensino
fundamental, do porteiro da noite do consultório que sempre me falava sobre as suas leituras, do
povo do trabalho antigo que já não vejo há tanto tempo. E minhas colegas de costura, como será que
estão? É de falta de gente que estamos sofrendo, não é? Que duro. Boa semana queridos.