Dercy para sempre!

Por Gazeta Admininstrator

A comunidade brasileira teria sido privilegiada em ter dado o último “adeus artístico” a uma legenda de nossas artes, a atriz, comediante e celebridade do riso, Dercy Gonçalves.

A impagável estrela morreu no sábado, dia 19 de julho, aos 101 anos de idade, o que por si já é um fato memorável, deixando um dos mais importantes legados de cultura popular brasileira em todos os tempos.

Em 2007, o produtor Carlos Salles conseguiu articular com Dercy o que seria sua “Farewell Tour” nos Estados Unidos, com um misto de entrevista-retrospectiva e vídeo clips da artista. Dercy estava completando a sensacional marca de 100 anos e em vista das inúmeras celebrações ocorridas no Brasil, ficou encantada com a possibilidade de levar seu riso aos imigrantes brasileiros e receber o carinho de quem está fora do país.

Desafortunadamente, a falta de suporte – patrocínios – inviabilziou a turnê e com isso, foi perdida uma oportunidade histórica. Algumas pessoas, já naquela época, me perguntavam porque tantas celebrações em torno de uma idosa e – para as novas gerações – já quase que totalmente esquecida atriz?
Ainda bem que nem todo mundo perdeu a memória. O Brasil é extremamente ingrato com seus artistas, e são raríssimas as exceções. Enquanto aqui nos Estados Unidos se vêm os astros da música, cinema, teatro e TV, trabalhando ativamente e sendo aplaudidos e prestigiados por milhares de fãs, o “culto esquizofrênico ao novo” no Brasil, faz com que os grandes nomes de nossas artes sejam relegados a verbetes de enciclopédias ou matérias de arquivo dos cadernos de cultura (quando muito). Isso quando estão vivos, vivíssimos artisticamente, como foi o caso de Dercy.

Há poucas semanas, quando participávamos do Brazilian Film Festival of Miami, tivemos chance de assistir a uma das últimas performances de Dercy, fazendo uma ponta – hilária, bizarra – no longa “Nossa Vida não cabe num Opala”. Aos 100 anos de idade ali estava a mesma Dercy. Irreve-rente ao extremo, debochada, revolucionária, contra-cultura. Dercy se manteve anti-herói brasileiro com uma autenticidade que deveria envergonhar as “estrelinhas de papel” dos tempos atuais. A platéia reagiu como sempre reagiam as platéias de Dercy. Riso, gargalhadas. Esse é o universo, o grande prêmio para quem dedicou sua vida a fazer as pessoas se divertirem.
Para os que porventura estejam lendo este editorial e não tenham a menor idéia de quem realmente foi Dercy Gonçalves, o jeito é fazer comparações com a realidade de agora.

Dercy, até os anos 70, era a única artista brasileira a lotar teatros em qualquer lugar do Brasil, mesmo sem fazer uma única chamada promocional na TV.
Seu humor simples, fácil, direto, popular – que por décadas lhe valeram o esnobismo das elites intelectuais e dos críticos de arte, igualmente desconectados com a estética da massa – arrastava multidões. Nada foi ou seguirá sendo mais brasileiro do que Dercy.

Como Chacrinha, ela traduzia de forma absolutamente genial e simples o espírito de total irreverência do brasileiro. A banalização dos tabús, a piada acima de qualquer cons-trangimento ou do hoje em dia tão badalado “politicamente correto”.
Foi, de fato e de direito, a “rainha do palavrão”. O que “chocava” a classe média, especialmente porque quanto mais velha ficava mais doida varrida se mostrava.

O povão adorava isso, se enxergava em sua autenticidade. O Brasil de hoje, que tanto copia os modelitos comportamentais que nada têm a ver com sua essência, ou pratica o moralismo hipócrita das religiões a crédito, já não entendia Dercy, já não lhe dava nenhum espaço.

Depois de reinar na Revista, no Cine-ma (foi uma das campeãs de bilheteria da Atlântida, superando as mega-produções de Hollywood nos anos 50 e começo dos 60), evoluindo para os palcos da comédia teatral e finalmente como campeã de audiência na TV, Dercy atravessou os anos 90 e o novo milênio num “ostracismo forçado”, por conta de seu contrato com o SBT, que a manteve longamente “no congelador”, com raras e nada engraçadas aparições.

Era apenas a Dercy “freak” que era levada para ser “homenageada” nos pastelões do domingo à tarde do Sr. Abravanel. A atriz, a comediante, era mantida fora do ar. Ela morreu infeliz com esse ostracismo forçado, mas nunca perdeu a pose. Foi irreverente até o fim. Horas antes de morrer, entrou no hospital fazendo barraco. Dercy não poderia se despedir do planetinha aqui, de outra forma.

O Brasil deve mesmo reverenciar Dercy. Poucos brasileiros foram tão brasileiros quanto ela.