"Sob a luz da lua": brasileira relata travessia com 'coiotes' do México até os EUA

Por Arlaine Castro

A fronteira entre Estados Unidos e México tem mais de 3.000 quilômetros de extensão e abrange quatro estados norte-americanos: Arizona, Novo México, Texas e Califórnia.

Deserto da Baja California, México. Era noite e o coiote dirigia com metade do corpo para fora da janela do carro. Com a mão direita, ele segurava o volante, e com a esquerda, uma escada. Em condições precárias, o veículo estava com faróis e lanternas desligados e todas as luzes do painel tampadas por panos. O coiote usava como referência a luz da lua.

Quem conta a história é Bruna, nome fictício de uma brasileira que fez a travessia. Ela estava no banco da frente do carro com outra mulher sentada na sua coxa direita e uma criança chorando sentada na sua coxa esquerda. Sem assento traseiro para caber o máximo de pessoas possível, várias mulheres sentadas no assoalho do veículo se espremiam para ocupar cada milímetro do veículo.

"O carro estava tão sujo que não dava para ver absolutamente nada pelo vidro. Eu até falei para o coiote que eu poderia segurar o volante enquanto ele segurava a escada. Mas ele não deu atenção", detalha Bruna.
Outros carros, nas mesmas condições, também faziam o trajeto cheio de imigrantes dentro.

Quando os veículos pararam de frente para o muro que divide Mexicali, no estado da Baja California, e Calexico, no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, todos os imigrantes foram para trás dos arbustos no deserto enquanto os coiotes colocavam as escadas para iniciar a escalada do muro. Bruna lembra que sua perna estava totalmente dormente e ao abaixar nos arbustos viu ossos no chão, mas não identificou se eram de animais, de humanos, ou dos dois.

Vindo do Brasil, o avião de Bruna pousou no Aeroporto Internacional Benito Juárez, na Cidade do México. Ela passou pela imigração dizendo que vinha como turista, respondeu às perguntas, mostrou a data da sua passagem de volta, teve seu passaporte carimbado e seguiu até o ponto combinado para encontrar com o primeiro coiote, que são os operadores dessas rotas ilegais.

Chegando ao local, ela se comunicou pelos códigos combinados, e esperou um homem aparecer e mostrar uma foto sua para seguir viagem. Sem conversar, ela foi levada até a saída do aeroporto, entrou em um carro com aparência e condições normais, e seguiu para um hotel.

Esse hotel ficava em uma região periférica da capital mexicana e pelo o que ela acha, era um local clandestino que recebia apenas imigrantes que iam atravessar a fronteira com os Estados Unidos de forma ilegal. "No hotel tinha uma menina bem nova que estava colocando o pessoal nos quartos. Ela me deu a chave e disse que o que eu precisasse naqueles dias era só avisar", recorda.

Havia gente de várias nacionalidades da América do Sul e Latina no hotel, mas a maioria era do Brasil. Bruna diz que tinha pessoas formadas e estudas, e gente muito humilde e de baixa renda. "Muitas pessoas estavam sozinhas e muitas com a família toda", conta.

Depois de três dias nesse hotel, um coiote levou Bruna até o Aeroporto Internacional Benito Juárez e ela embarcou para Tijuana, no estado da Baja California, onde começou a rota terrestre até a fronteira com os Estados Unidos.

Chegando lá, ela se comunicou por códigos novamente até encontrar o coiote. "Em Tijuana, as coisas são muito tensas. É um clima bem pesado. O homem que eu encontrei tinha muita cara de mafioso. Ele perguntou se eu entendia espanhol e eu só balancei a cabeça dizendo que não, mas eu entendia muitas coisas", conta.

Ela foi levada por esse coiote até um furgão — que começou a encher até ficar com umas 15 pessoas — e eles saíram rumo a cidade de Mexicali, que é quase 300 km de distância e dá mais ou menos quatro horas de uma viagem muito perigosa. A fronteira entre Estados Unidos e México tem mais de 3.000 quilômetros de extensão e quatro estados norte-americanos fazem divisa com o país vizinho: Arizona, Novo México, Texas e Califórnia, que é por onde ela vai entrar.

Uma pesquisa do Centro de Estudos Sociais e Opinião Pública (CESOP), da Câmara dos Deputados do México, revelou que existem cerca de 20 milhões de automóveis ilegais no México, o que representa mais de 1/3 do total da frota no território. Esses veículos não têm documentos e as placas levam o nome de cidades dos Estados Unidos. Outros têm placas falsas ou sequer estão emplacados.

E são justamente esses carros que os coiotes usam para transportar os imigrantes. Muitos não são nem originais, há diferentes peças de diversas fabricantes na composição da lataria e na parte mecânica. Esses veículos clandestinos são conhecidos como “carros chocolate” e essa expressão faz referência a uma iguaria, como se fosse um chocolate suíço, por não existirem no mercado local.

"Os carros de lá são modelos que eu nunca vi na vida e todos estão em más condições. Eles usam esses carros horríveis para atravessar as pessoas. No meio do caminho entre Tijuana e Mexicali, a gente passa por várias barreiras nas estradas, como se fossem pedágios, e eu acredito que todo mundo ali já é comprado e sabe de tudo que está acontecendo, pois nenhum carro é revistado", explica.

Durante o percurso, eles pararam apenas uma vez na pequena cidade de La Rumorosa, no município de Tecate, que tem menos de 2.000 habitantes. A área rochosa em meio ao deserto é uma importante rota dos coiotes porque fica bem próximo da fronteira internacional de Jacumba Hot Springs, na Califórnia.

Como não existe nenhuma passagem oficial de fronteira, muitos imigrantes se arriscam e tentam atravessar a área andando, mas o perigo é extremo. Além do clima do deserto, das montanhas e da falta de água, o local também é cheio de animais perigosos, como cobras, escorpiões e coiotes — os animais de quatro patas.

Quando o furgão chegou em Mexicali, no final do dia, eles pararam em um hotel que era o ponto de encontro para trocar de carro. Neste intervalo, um dos coiotes roubou todo o dinheiro e a mochila da Bruna. Ela ficou apenas com seu celular e o passaporte.

Um coiote levou Bruna e mais sete pessoas para dentro de um carro pequeno e bem velho, e eles seguiram para o deserto na fase final da travessia.

"No caminho, eu tentava ler algumas placas para me situar, mas eu não conseguia porque já estava de noite. Era tudo muito sigiloso e apreensivo. A gente começou a entrar em umas estradas de terra no meio do mato e dava para perceber que todos esses caminhos tinham sido abertos pelos próprios coiotes, por isso eles conseguiam dirigir no escuro sem nenhuma iluminação. Só tinha a lua", conta Bruna.

Depois de mais ou menos uns 40 minutos nessas estradas, eles pararam em outro ponto dentro do deserto para dividir homens e mulheres em novos carros — cerca de cinco veículos. Foi então que Bruna entrou no carro com mais dez pessoas e sentou no banco da frente com a mulher e a criança no colo.
Todos os coiotes dirigiam e carregavam as escadas improvisadas para os imigrantes escalarem o muro.

"Só quando a gente está no caminho que percebe o tamanho do perigo e quão arriscado e assustador é fazer tudo isso, porque a gente não sabe de nada. Somos totalmente reféns dos coiotes. Você pode sofrer um acidente, ser sequestrado ou acontecer coisas muito terríveis. Me venderam uma ideia que era como atravessar de um bairro para outro. Eu não sabia da complexidade e do perigo de tudo isso", explica.

Esse percurso final com o carro lotado de imigrantes até parar de frente para o muro que divide Mexicali e Calexico durou de dez a 20 minutos. Os coiotes montam as escadas no muro rapidamente enquanto todos ficam em silêncio e abaixados atrás dos arbustos.

"Depois que eles montam as escadas, chegam na gente e falam: pula. E eu não sei como eu escalei aquele muro com as escadas improvisadas que eles colocam e atravessei para o outro lado. Essa foi a parte mais difícil pra mim, pois é apavorante passar por isso e ver tantas família com medo", diz.

Os primeiros a escalar são os homens casados, que vão com os filhos amarrados ao corpo. Em seguida, as mulheres casadas, depois as mulheres solteiras — grupo da Bruna — e por fim, os homens solteiros.

Em questões de segundos, os coiotes somem pelo deserto com seus carros camuflados em meio à escuridão. E do outro lado da fronteira, todos os imigrantes, incluindo a Bruna, são presos pela polícia norte-americana e levados para o centro de detenção de fronteira.

Ela ficou alguns dias no centro de detenção na Califórnia, depois foi mandada para uma penitenciária na cidade de Atlanta, no estado da Geórgia. Por fim, Bruna foi enviada para outra penitenciária no estado da Loisiana.

Por motivos de segurança, não foi revelado o tempo que a Bruna ficou presa nos Estados Unidos nem sua cidade natal no Brasil. Porém, ela foi deportada e já está no Brasil passando por recuperação psicológica após os traumas de tudo que viveu.

Para realizar o sonho de morar nos EUA, mesmo entrando de forma ilegal, há quem pague poucos dólares, de mil a dois mil, porém, o valor pode chegar de 15 mil a 20 mil dólares, algo em torno de R$ 100 mil atualmente. Na maioria dos casos, quem tenta visto de turista e não consegue, recorre para essa prática clandestina.

O número de brasileiros ilegais cruzando a fronteira com os Estados Unidos bateu recorde histórico no ano fiscal de 2021, que vai de 1º de outubro de 2020 a 30 de setembro de 2021. Reportagem de André Schaun, do site AutoesporteGlobo.