"Para a comunidade brasileira, essas propostas são devastadoras", analisa vice-diretora da FLIC

Mineira de Belo Horizonte (MG), Renata Bozzetto é a atual vice-diretora da Florida Immigrant Coalition.

Por Arlaine Castro

Renata Bozzetto é natural de Belo Horizonte (MG) e ocupa atualmente o cargo de vice-diretora da Florida Immigrant Coalition.

Renata Bozzetto é natural de Belo Horizonte (MG). Morando na Flórida desde 2004, doutora em Sociologia, ela ocupa atualmente o cargo de vice-diretora da Florida Immigrant Coalition, a maior organização não-governamental pró-imigrante da Flórida.

Em uma entrevista exclusiva ao Gazeta News, Bozzetto fala sobre a vinda para os EUA, carreira, comunidade brasileira, leis imigratórias e o futuro dos imigrantes face às mudanças políticas na Flórida, com a aprovação do projeto de lei pelo Senado e pela Câmara (CS/SB 1718).

Gazeta News - Como foi sua vinda para os EUA?

Renata Bozzetto - Meus pais e irmãos já estavam morando na Flórida por alguns anos e minha mudança definitiva foi em 2004 como uma oportunidade de reunificar nossa família. Atualmente sou casada e tenho dois filhos.

GN - Qual sua área de formação?

RB - Sou doutora em Sociologia pela Florida International University e minha área de especialização é inclusão sociocultural e política de imigrantes nos Estados Unidos. Minha área de pesquisa inclui integração de brasileiros no sul da Flórida. Atualmente sou vice diretora da Florida Immigrant Coalition - FLIC - (Coalizão de Imigrantes da Flórida, em tradução livre), uma organização estadual, não-governamental, apartidária e sem fins lucrativos que trabalha para proteger e ampliar os direitos de imigrantes na Flórida.

GN - Como e quando entrou para a Florida Immigrant Coalition? O que é a organização?

RB - Entrei na organização como voluntária em 2010 junto com meu namorado (hoje marido) e fiquei impressionada com o nível de articulação e integração das organizações membras. A FLIC é uma coalizão estadual, que foi formada em 1998 e desde então tornou-se instrumental para a justiça imigratória na Flórida. Nossa coalizão tem mais de 50 organizações membras no estado incluindo organizações trabalhistas, universidades, grupos estudantis, trabalhadores rurais, e advogados. Em 2010, a pressão criada por grupos estudantis e outros a favor de crianças e jovens que não tinham documentos estava super presente na mídia nacional. Principalmente por que a FLIC organizou a caminhada que ficou conhecida como "Trail of Dreams" com quatro estudantes, de Miami para Washington, DC, para educar comunidades sobre o DREAM Act. Um dia o meu namorado estava saindo do escritório em West Palm Beach e viu um grupo de ativistas fazendo um protesto na frente do escritório do Senador LeMieux a favor do DREAM Act. Ele conversou com alguém e pegou um cartão. Quando nos encontramos à noite, o John disse: "achei a sua turma... acho que você deveria contatar essa coalizão do imigrante." Essa foi nossa entrada na FLIC - minha e dele como voluntários. Eu brasileira e ele americano, ambos confidentes de que imigração traz benefícios tremendos para nossa sociedade e economia. Em 2020, já mãe de dois filhos e envolvida em varias organizações locais, eu decidi deixar de dar aulas na universidade e entrei profissionalmente na organização. Vim fazer o que eu gosto.

GN - Como é ser uma brasileira dentro de uma organização tão importante para os imigrantes na Flórida?

RB - Extremamente inspirador e um bocado de muito trabalho! A população brasileira na Flórida cresceu muito nos últimos anos, mas manteve-se insulada - em parte por causa da língua, em parte por causa dos processos imigratórios diferentes de nossa comunidade. Então, ser brasileira traz, em si, um comprometimento de inclusão de nossa comunidade. Oferecemos vários serviços gratuitos para a comunidade, mas muitos brasileiros ainda não conhecem a FLIC.

Dentro da comunidade brasileira temos desde empresários de sucesso a vítimas de tráfico humano. E a função da FLIC é fazer com que a Flórida seja um estado no qual todos, dentro dessa diversidade, tenham a chance de viver dignamente e sem medo. Então, o trabalho para engajar e servir a comunidade brasileira é bem complexo e vasto. Mas também é um trabalho inspirador. Quando a gente tem o privilégio de trabalhar com e conhecer imigrantes de tantos outros países, com tantas outras histórias imigratórias, é fácil ver que somos parte de uma comunidade global. Imigrantes são empreendedores, pessoas que arriscaram deixar o país de origem em busca de uma vida melhor e esse desejo nos liga uns aos outros a um propósito inspirador.

GN - Como você enxerga a comunidade brasileira da Flórida atualmente? Consegue traçar um perfil?

RB - Nossa comunidade é muito diversa e por isso muitas pessoas acham que é uma comunidade desconectada. Não acho que somos tão desconectados. Até hoje não conheci um brasileiro que não conheça outro brasileiro e que não esteja envolvido com algo brasileiro – seja um grupo de amigos, congregantes, associação de trabalho. Porém, a experiência de empresários que chegaram aos EUA recentemente, com visto de investimento, é extremamente diferente da experiência de trabalhadores que entraram com visto de turista e hoje estão com o status irregular. Infelizmente, grupos diferentes têm poucas oportunidades de interação, então existem vários estereótipos na nossa comunidade. O nosso perfil é heterogêneo em quase todos os sentidos. O que nos conecta é a saudade - a experiência de ter deixado um pouquinho da gente no Brasil e ter carregado outro pouco na viagem. Aí não tem como separar rico do pobre, cidadão de indocumentado - todo imigrante brasileiro tem essa saudade (mesmo quando fala que não!).

GN - Os brasileiros estão entre os imigrantes atuantes na sociedade ou pecam ainda em não buscar uma posição mais participativa?

RB - Infelizmente, um grande número de brasileiros ainda estão desconectados, principalmente se considerarmos o poder socioeconômico de nossa comunidade e o potencial que temos de advogar por nossos direitos. Várias pessoas chegam aos Estados Unidos e veem que as ruas não têm buraco, que as escolas têm computador suficiente para as crianças e pensam: "nos EUA o governo funciona." Brasileiros são tão traumatizados com o governo do Brasil que eles tornam-se ultra otimistas quando chegam aqui e acham que não precisam participar. Outros têm medo, por causa da situação imigratória. Mas a realidade é que nenhuma democracia funciona sem voz ativa - o governo só funciona por causa da participação cívica da sociedade. Obviamente, não estou ignorando a participação ativa de indivíduos, mas pelo tamanho de nossa comunidade, temos um potencial muito maior.

GN - O que diz sobre o projeto de lei de imigração e o possível impacto na comunidade?

RB - O projeto de lei inclui várias medidas horríveis que vão impactar tanto imigrantes quanto pessoas que interagem com imigrantes que ainda estão navegando o processo imigratório. Para a comunidade brasileira, essas propostas são devastadoras. A grande maioria em nossa comunidade participa de uma economia étnica que é movimentada principalmente por trabalhadores que ainda não têm um status imigratório regular ou que estão "rebolando" para manter um status legal. Se o poder judicial não intervir, a devastação será tremenda.

GN - Quais programas a FLIC está desenvolvendo atualmente em prol dos indocumentados?

RB - Temos três áreas de trabalho:

1) Advocacia a favor de leis pró-imigrantes: onde trabalhamos para bloquear a proposta anti-imigrante do governor DeSantis no nível estadual e para passar propostas que vão otimizar o acesso ao status de residência temporária e aquisição de cidadania no nível federal.

2) Educação e conscientização de imigrantes e não-imigrantes: lançamos a campanha “The Florida Way” (o estilo da Flórida) para educar Floridianos sobre a importância de imigrantes para nosso estado, nossa cultura e economia.

3) Serviços diretos que visam melhorar a qualidade de vida de floridianos: temos nossa linha direta oferecendo informações e referências gratuitas. Também oferecemos apoio para cidadania gratuita (online e em pessoa) e consultas com advogados de imigração durante as nossa “clínicas de proteção comunitária”.

GN- A Flórida está atualmente com um dos governos mais severos à imigração ilegal nos EUA em comparação com outros estados republicanos. O que você diz sobre isso e o atual governador, Ron DeSantis, possível candidato à Casa Branca em 2024?

RB - Acreditamos que o governador está usando a situação imigratória para ganhar atenção nacional. Infelizmente ele está tomando essa posição contra uma população enorme, incluindo pessoas que o elegeram, já que 1 a cada 5 floridianos são imigrantes.

GN - Como percebe o projeto de lei de imigração em debate no legislativo da Flórida? O que diz sobre ele e o possível impacto na comunidade?

RB - O projeto de lei inclui várias medidas horríveis que vão impactar tanto imigrantes quanto pessoas que interagem com imigrantes que ainda estão navegando o processo imigratório. Para a comunidade brasileira, essas propostas são devastadoras. A grande maioria em nossa comunidade participa de uma economia étnica que é movimentada principalmente por trabalhadores que ainda não têm um status imigratório regular ou que estão “rebolando” para manter um status legal. Isso inclui, por exemplo, pessoas que entraram pela fronteira e estão sem documento nenhum, pessoas que têm visto de estudante e trabalham sem autorização, etc. É muito comum dentro dessa economia a contratação de trabalhadores que, de acordo com essa proposta, pode culminar em multa de ate $10 mil para o empregador e no cancelamento de licenças de empresas. Imagine o impacto? Outras provisões são tão extremas que irão afetar nossa vida privada – como prisão de até 15 anos para quem for pego transportando uma pessoa indocumentada. Imagina um corretor de imóveis que tem que levar clientes que podem estar sem status? Ou um pastor que recebe em sua igreja famílias que têm membros sem documentos? Sem contar as outras medidas, como coleta de DNA de imigrantes sem consentimento ou coleta de dados imigratórios em hospitais. A proposta é realmente excessiva e irresponsável.

GN - Quais mudanças podem ocorrer na vida dos indocumentados que vivem na Flórida caso a lei seja aprovada e promulgada?

RB - Se as propostas virarem lei e o poder judicial não intervir, a devastação será tremenda. No nível mais superficial, as pessoas começaram a ter medo de relacionamentos cotidianos – quem vai querer trazer um coleguinha do filho para casa sem ter certeza que este coleguinha nao é indocumentado? Quem vai ter coragem de contratar a faxineira que não tem autorização de trabalho, ou atender clientes recém chegados do Brasil que podem ter entrado no país sem autorização? Essa lei vai causar a deterioração de nossas relações sociais, o que abre portas para preconceito e injustiça. Além disso, existem as consequências sérias, incluindo penalização criminal, multas, revogação de licenças. Acredito que o resultado será realmente devastador.

GN - Uma mensagem à comunidade imigrante, em especial a brasileira?

RB - A decisão de deixar o nosso país e construir um lar na Flórida foi a mais marcante da minha vida, e acredito que também foi marcante para muitos membros da nossa comunidade. Se esta é a nossa casa "por escolha," que seja também nossa casa por compromisso. Como diz o ditado, "quem ama, cuida." Participar de nossa democracia é a maneira de construir e cuidar desse lar que escolhemos. A minha mensagem é um convite: o projeto de fazer da Flórida um lar mais justo e acolhedor para nossas comunidades é importante e transformador, e será um prazer ter a comunidade brasileira ativa e conosco. As maneiras de participar são muitas - petições, protestos, educação, voluntariado. Fica o convite.