?Minhas duas estrelas?: uma história

Por Gazeta Admininstrator

Uma da mais intensas e turbulentas histórias de amor vividas durante os anos de ouro do rádio brasileiro foi a responsável pela construção de um verdadeiro patrimônio da música popular brasileira: a série de canções compostas ou interpretadas por Herilveto Martins (1912-1992) e Dalva de Oliveira (1917-1972) nos momentos de brigas e desentendimentos do casal. As músicas tornaram-se grandes sucessos, e as brigas persistentes manchetes de jornais. Tudo isso, foi presenciado pelo filho do casal, o cantor Pery Ribeiro que, depois de respirar fundo, decidiu reviver a história de vida, de amor, amargor e música dos pais, e transformá-la em um livro. “Minhas duas estrelas”, lançado no dia 17 de março na Bienal do Livro em São Paulo, e em breve chegará ao mercado dos Estados Unidos.
Os escritos de Pery não são exatamente uma auto-biografia porque levam consigo a responsabilidade de contar com fidelidade a história de dois ícones da música popular brasileira. Para isso, o cantor utilizou a memória de um mundo visto com os olhos de um menino e ouviu dezenas de depoimentos de artistas que conviveram com o casal, como Dorival Caymmi, Nelson Gonçalves e Grande Otelo. Todo o trabalho levou nada menos que oito anos para ser concluído.
No livro Pery narra uma série de momentos familiares, repletos de boas e más lembranças. Entre as lembranças difíceis está o dia em que uma das irmãs de Dalva flagrou o compositor na cama com a também cantora Isaurinha Garcia. As roupas da cantora foram jogadas pela janela. Por outro lado, nos depoimentos colhidos no livro, o ex-secretário de Herivelto, e atualmente jurado de um programa de televisão, José Messias diz que “Dalva não era santa” e que “também fez das suas”.
As brigas do famoso casal chegaram à imprensa, e tomaram conta também do repertório musical da época. O grande sucesso de Dalva em sua carreira solo parecia incomodar Herivelto, narra Pery em seu livro. Em parceria com o jornalista David Nasser, Herivelto escreve “Caminho Certo” cuja letra é uma crítica aberta a Dalva: “Transformava o lar na minha ausência em qualquer coisa abaixo da decência”.
Em defesa de Dalva de Oliveira compositores amigos como Ataúlfo Alves e Nelson Cavaquinho escreveram letras para defendê-la. Algumas das canções foram marcantes, como Calúnia, que diz: “Quiseste ofuscar a minha fama, e até jogar-me na lama, só porque eu vivo a brilhar”, de Marino Pinto e Paulo Souto. As trocas de farpas se prolongaram numa sucessão de composições que hoje fazem parte de um dos mais importantes patrimônios da MPB, mas que foram um episódio traumático para o menino Pery, que via a vida íntima dos pais devassada nos jornais do país inteiro.

Os anos de ouro
Heriveldo Martins e Dalva de Oliveira marcaram os anos mais áureos da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, o mais poderoso veículo de comunicação em uma época em que a televisão simplesmente não fazia parte da vida dos brasileiros. Era o rádio o responsável por reunir as famílias para ouvir notícias, música e rádio-novelas.
Naquela época, os artistas do rádio eram as grandes estrelas e viviam, quase sempre, uma vida de boemia. Dalva aprendeu a apreciar a bebida, e não conseguia subir no palco sem tomar um gole de conhaque, conta o livro.
Herivelto e Dalva se conheceram em meados dos anos 30. Ele começava a despontar como compositor e Dalva era cantora de orquestra. Apaixonaram-se e Herivelto a convidou para fazer parte de um grupo ao lado dele e do cantor Nilo Chagas.
Assim nasceu o Trio de Ouro, grupo vocal que emplacou “Praça Onze e Ave Maria do Morro”, entre outros sucessos.
Mais do que uma biografia, “Minhas duas estrelas” narra de forma realista o universo dos artistas da época, sem medo de tocar em temas delicados como drogas e álcool. Pery revela, por exemplo que por duas vezes Dalva de Oliveira resgatou o cantor Orlando Silva (1915-1978) de um banheiro, desmaiando com uma seringa de heroína no braço.
“Minhas duas estrelas” também retrata o mundo de glamour vivido pelos pais e visto com os olhos do então menino Pery. “Fecho os olhos e me vejo no Cassino da Urca... posso sentir o frio do corrimão dourado, a maciez do tapete ouro-velho, o perfume francês das mulheres no ar...”, narra Pery Ribeiro em detalhes. Eram os anos 40, tempos de grandes astros da música com os quais convivia tendo como pano de fundo os mais espetaculares show produzidos no país.
Em uma mistura de emoções, lembranças, decepções e alegrias, Pery aborda também temas como o sensacionalismo da imprensa, a vertigem da fama, a solidão e a decadência, ingredientes que até hoje fazem parte da vida de quem conhece o sabor dos aplausos no mundo artístico, um mundo que na maioria das vezes, é totalmente desconhecido por quem está do lado de cá, aplaudindo.
Pery Ribeiro conversou com o Gazeta e conta que escrever o livro foi um exercício difícil, que muitas vezes o fez chorar, e que só foi concluído com o incentivo e a ajuda da esposa, a jornalista Ana Duarte.

Gazeta – Qual é o ponto alto do livro?

Pery - Acho que é o livro em si, o conteúdo, a história vivida por mim, dentro da vida de duas pessoas, da união de duas pessoas. O assunto todo mexe muito com a cabeça das pessoas, não somente por ser Dalva e Herivelto, por serem dois seres humanos que estiveram juntos, com personalidades fortes, causou brigas e desavenças, mas causou amor profundo, que transcendeu momento particular deles. Até hoje, 35 anos depois que minha mãe morreu, e 15 anos que meu pai morreu, o livro causa essa curiosidade, essa penetração no coração das pessoas, tanto é que Ruy Castro escreveu no prefácio que é o maior livro sobre vida de um artista, escrito no Brasil, é um testemunho bastante forte.

Gazeta - Para as gerações que não viveram os anos dourados do rádio, qual é a imagem que o livro passa das estrelas Dalva de Oliveira e Erivelto Martins?

Pery - Para os mais jovens e para os que têm boa vontade de ler, é questão de mostrar o que já aconteceu num país completamente diferente do Brasil de hoje. Um país dentro de sua produção romântica, a ponto daquela produção servir de herança do que fazemos hoje, musical e literiamente. Essa herança veio daquele momento, aquele momento do jeito que se vivia, que se praticava vida, foi coisa das mais importantes para um país, para que mostre que aquela música não existe mais, aquela alegria não existe mais, aquela riqueza de talento talvés não exista tanto mais. É uma reflexão forte do que já foi o país e que nos pertence como herança cultural.

Gazeta – Qual composição bate mais fundo no seu coração?

Pery - Eu diria que quase todas músicas que um cantava para o outro foram muito importantes porque relatam uma história. Mas “Caminhemos” do meu pai me toca, “Ave Maria no Morro”, e minha mãe com “Tudo Acabado” e “Errei sim”, também me tocam muito porque são músicas muito fortes.

Gazeta – Qual é a grande lição deixada por eles?

Pery - Primeiro uma lição de amor muito grande porque em que pesem as desavenças, brigas, coisas brutais e doloridas narradas no livro, havia muito amor. Digo no livro e repito que minha mãe morreu apaixonada por meu pai, e ninguém me tira na cabeça que ele morreu apaixonado por ela, embora tenham tido vidas diferentes, mas foram pessoas que registraram sua passagem pela vida através de um único amor, profundamente enraizado em suas entranhas, na qual a música e a poesia foram o grande elo de ligação entre os dois.

Gazeta - Uma das matérias publicadas no Brasil sobre “Minhas duas estrelas” dizia que o livro “é um exorcismo de seus fantasmas e medos”. É isso mesmo?

Pery - Acredito que sim. Hoje pego no livro e sinto que é como se eu tivesse “desvestido”uma roupa que estava me pesando muito, e que hoje em dia olho para ela e não entendo como é que eu já coube nela um dia. É como uma catarse, como se eu tivesse expulsado todas aquelas coisas de dentro de mim. O livro de deu um distanciamento de tudo aquilo que eu vivia. Eu vivia com tudo aquilo muito perto de mim, muito dentro de mim.

Gazeta – De que forma sua esposa, Ana Duarte, participou da elaboração do livro?

Pery – Ela teve uma participação fundamental e definitiva porque eu não uso computador nem máquina de escrever. Além disso, a própria idéia de fazer o livro surgiu de forma engraçada e ela teve participação decisiva. Uma ocasião o colunista Mauro Duarte do O Globo escreveu, não me pergunte por que, que eu estava escrevendo minhas memórias com Dalva e Herivelto. E eu jamais tinha pensado nisso. Achamos uma idéia maluca, mas a Ana ficou com essa idéia na cabeça. Ela é minha mulher há 28 anos e sabe da minha necessidade de colocar para fora as minhas neuroses e defeitos. A Ana comprou uns cadernos pautados, 3 canetas Bic e disse: - Começa a escrever. Comecei, e aquilo foi me revolvendo por dentro. Algumas vezes tinha acessos de choro, por causa das lembranças, e não queria mais pegar no livro, ficava meses sem escrever. A Ana foi pegando todo o relato, passando para o computador, e ficava até de madrugada lendo o que eu tinha escrito à mão, sugeria alterações, e foi fazendo o quebra-cabeças. Eu escrevi, mas a coerência da narrativa é dela. Ela é uma guerreira.

Gazeta – Quando o livro estará disponível nos EUA?

Pery – A Ana já está em contato com o pessoal do Brazilian Books para colocar no site e disponibilizar para venda aqui nos EUA.

Gazeta – Como você está encarando a experiência de participar pela primeira vez de uma Bienal do Livro?

Pery - Estou numa excitação que você não imagina. Todos os jornais e revistas que fazem resenha sobre mais de 3 mil lançamentos da Bienal colocaram o “Minhas duas estrelas”como um dos 10 livros mais importantes. É um coisa única na minha vida. Não acredito que vá escrever outro livro. Esse foi feito com minha alma, e coração aberto. É um experiência única na vida.

Gazeta - E o seu novo CD?

Pery - Chama-se “Cores da Minha Bossa”, gravado em Miami e no Rio, e lançado primeiro aqui nos EUA. Interpreto desde clássicos dos anos 40 até canções inéditas, incluindo composições de Tom Jobim, Ivan Lins, Gilberto Gil, Billy Blanco e Edu Lobo, e há também composições minhas. É o meu álbum número 31, sendo que 12 foram dedicados à Bossa Nova.