A memória de povos indígenas, representada em mais de 40 mil objetos feitos de plumas, trançados, madeira e cerâmica no acervo etnográfico do Museu Nacional, não resistiu ao incêndio e ao desabamento do Palácio Paço de São Cristóvão, sede do Museu Nacional, em 2 de setembro de 2018. Mas, passados quase quatro anos da tragédia, a instituição comemora nesta segunda-feira (6) 204 anos, em meio a um trabalho de reinventar como essas e tantas outras histórias devem ser reunidas, tratadas e contadas em futuras exposições, com reinauguração completa prevista para 2027.
Curador do acervo etnográfico, o antropólogo João Pacheco chama de depressão o sentimento que se seguiu ao incêndio, quando constatou que praticamente todas as peças de seu departamento tinam sido destruídas. "Existiam coleções históricas muito importantes, formadas ainda no Império, coleções formadas na República, por Marechal Rondon e Roquette Pinto. E também coleções mais recentes, feitas por vários antropólogos. Por mim, inclusive."
Entre essas peças históricas, havia tesouros como uma máscara Tikuna desenhada por Jean-Baptiste Debret, durante a Missão Artística Francesa ao interior do Brasil, entre 1816 e 1831, e um escudo trançado Tukano descrito em 1861 pelo poeta Gonçalves Dias, que também se dedicou à etnografia.
Apesar da identificação dos dois artistas renomados que, de alguma forma, participaram do caminho feito por essas obras até chegar ao acervo, o Museu Nacional não sabia informar, por exemplo, quem foi o artesão responsável pelas peças, em que ano foram confeccionadas e como seus povos descreveriam a importância cultural e simbólica de cada uma. Pacheco diz que essa é a virada proposta para a nova coleção. "Não é questão de resgate, nem de reconstrução. É questão de renascimento. A nova coleção do Museu Nacional está surgindo de maneira muito diferente da antiga e muito mais adaptada aos padrões atuais de pensamento", afirma o antropólogo.
Segundo Paheco, isso também garante um salto qualitativo para a produção científica. "As novas coleções estão sendo refeitas principalmente através do contato direto com os povos e comunidades indígenas. Nosso material é totalmente identificado pelos indígenas. Se tiver um colar, teremos o nome dele na língua indígena, as ocasiões em que ele é usado ritualmente, de que materiais ele é composto, e quem fez o objeto, quem foi o artesão e a comunidade que construiu, em que ano foi feito."
O antropólogo explica que, além de recompor o acervo, o projeto visa trazer os indígenas para este processo e produzir resultados que levem um retorno a seus povos. Isso já está acontecendo em outro processo de aquisição de acervo, em que museus no Brasil e no exterior compartilharam com o Museu Nacional imagens de 12 mil peças de origem indígena brasileira que compõem suas coleções. É o caso de um manto sagrado Tupinambá, que foi levado para a Europa no fim do século 16 e está conservado há quase 500 anos. Ao obter imagens detalhadas dessa peça, o Museu Nacional as compartilhou com comunidades Tupinambás da atualidade, que passaram a trabalhar em reproduções e releituras da peça.
"Quando a gente manda esse material para os indígenas, cria-se uma conexão muito grande na cabeça deles, e o passado se junta com o presente deles. Eles podem começar a reproduzir a cultura material de um modo muito impressionante. Coisas que nunca viram e só ouviram os avós contarem, eles agora estão vendo. É uma iniciativa importante que está tendo repercussões na vida das comunidades", acrescenta.