O caipira nosso de cada dia
Você, brasileiro que mora em diversas regiões dos EUA, ainda se lembra de como um “caipira” fala? Estou me referindo, por exemplo, àquele famoso “porrrrta”. Em terras norte-americanas, os falantes de inglês também possuem formas “caipiras” de falar.
No Brasil, infelizmente, ainda vejo muitas pessoas criticarem o jeito caipira de usar o idioma. Essa forma de se comunicar acaba estereotipada como “errada”. E quem usa essa harmonia gostosa de falar sofre inúmeros preconceitos. E, por essa razão, o grande compositor Renato Teixeira escreveu uma música que representa uma luta contra o modo “urbano” de classificar o que vem do interior:
“Qui m´importa, qui m´importa. O seu preconceito qui m´importa. Se você quer maiores aventuras, vá pra cidade grande qualquer dia. Eu sou da terra e não creio em magia. É só o jeito de um rapaz caipira.”
Mas será que esse famoso sotaque caipira nasceu no interior mesmo?
Você sabia que aquele “R” que o caipira fala no final da sílaba, como no caso de “porrrrrrrta”, veio da cidade grande?
De acordo com uma pesquisa realizada pelo professor da USP, Manoel Mourivaldo Almeida, o que a gente conhece como sotaque caipira é o resultado da expansão territorial ocorrida nos séculos 16 e 17 por todo país; e não apenas em São Paulo.
O professor afirma que o sotaque caipira surgiu da cultura de miscigenação colonial em núcleos familiares paulistas, compostos por portugueses e índios de diferentes etnias, e está em formação desde esses primeiros contatos ocorridos na extensa região do então planalto de Piratininga.
Os indígenas, principalmente os falantes de Tupi, acompanhavam as bandeiras. A hipótese da interpretação indígena é compatível com a difusão feita pelos bandeirantes paulistas.
É esquecido o percurso histórico da origem e a formação do que hoje é o estado, a capital e o interior. Enxerga-se a região da capital e do interior apenas como é hoje. Por isso, esse equívoco aparece. O “R” de “porrrrta” pode, portanto, ser encontrado em diversas regiões do Brasil.
O mesmo equívoco ocorre com o que chamamos nas ciências da linguagem de rotacismo, ou seja, quando no lugar do L se pronuncia um R , como em “pranta”, no lugar de planta. Esse fenômeno também pode ser encontrado em muitas localidades brasileiras e está mais relacionado às variáveis e aspectos sociais, como a escolaridade do falante, do que a motivos meramente regionais.
Com isso, esses dois fenômenos citados no texto de hoje passam a ser considerados como características específicas do português popular brasileiro. Veja mais exemplos.
Vogais foram enfiadas pelo meio das consoantes para torná-las pronunciáveis, o ´mel´ virou ´mele´, a ´flor´ virou ´fulô´. Consoantes finais, como as do infinitivo, foram suprimidas. Em vez de ´falar´, os usuários dizem ´falá´. Os ´zóio´ do povo enfrentaram os olhos do rei, o ´vossa mercê´ dos mandões tornou-se o ´mecê´ dos mamelucos. E por aí vai...
Por mais que alguns puristas da língua considerem esse jeito caipira de falar como algo “errado”, a harmonia desse modo de se expressar sempre fez sucesso. Isso explica a familiaridade de personagens tão estilizados como os famosos Jeca Tatu e Chico Bento. Os famosos cantores sertanejos Chitãozinho e Xororó interpretaram a música Caipira, de Joel Marques e Maracaí, e deixaram seu recado:
Vivo com a poeira da enxada // Entranhada no nariz // Trago a roça bem plantada // Pra servir o meu país // Sou, sou desse jeito e não mudo // Na roça nós tem de tudo // e a vida não é mentira // Sou, sou livre feito um regato // Eu sou um bicho do mato // Me orgulho de ser caipira.