O concerto brasileiro na Alemanha

Por Gazeta Admininstrator

O Ano do Brasil na Alemanha tem uma boa chance de suprir uma lacuna muito ressentida em seu equivalente ocorrido na França: a apresentação de uma amostragem do que se faz de melhor por aqui também na música de concerto. Nunca é demais lembrar que Villa-Lobos é até hoje classificado pela crítica como o mais importante compositor de música erudita das três Américas - indício de que a produção brasileira nesse front tem o que mostrar mesmo na terra de mestres como Bach, Beethoven e Brahms.

Convicto de que nossa música de concerto não pode ficar mais uma vez de fora, o elogiado barítono Renato Mismetti, paulista radicado há 15 anos na Alemanha, desenhou todo um projeto para evitar essa ausência: com o título ainda provisório de Travessia, o programa conta com peças especialmente escritas por compositores brasileiros renomados como Almeida Prado e Jorge Antunes, além do mexicano Manuel de Elías. Inserido na série Poesia&Música - Sonoridades Brasileiras, criada em 2000 por Mismetti e pelo pianista Maximiliano de Brito para a jovem Fundação Apollon, de Bremen, o repertório de Travessia tem como tema as marcas da cultura de origem africana no imaginário de compositores e também de poetas. Detalhe: a Apollon acaba de ser incluída no Conselho Internacional de Música da Unesco, como reconhecimento do mérito do projeto Sonoridades Brasileiras no estabelecimento de "pontes culturais".

O cerne do projeto é um dos mais ricos filões da música de concerto do Brasil, por sinal herdado de grandes compositores como Schumann, Schubert e Brahms: a canção de câmara, o lied, fusão mágica entre canto e poesia. Assim, coube a Manuel de Elías, presidente do Colégio Latino-Americano de Compositores, musicar um dos extraordinários "poemas negros" de Jorge de Lima, enquanto compositores brasileiros e também alemães foram convidados a transcriar a partir de textos de Castro Alves, Luiz Gama e o contemporâneo Oswaldo de Camargo, para mencionar só alguns dos poetas. Paralelamente, Mismetti e Brito mergulharam numa copiosa pesquisa que já levantou mais de cem títulos do repertório de derivação africana para canto e piano hoje existente no Brasil. O duo está concluindo a gravação do primeiro CD de uma série que vai documentar essa produção, sob o título Agô, homônimo da cantata que Almeida Prado compôs especialmente para os dois intérpretes. Mas agora a prioridade é o projeto Travessia.

"Existe uma importante camada do público na Alemanha, país onde se encontra o maior número de brasilianistas no mundo, ávida por conhecer melhor também o que o Brasil faz no campo erudito, para além dos surrados clichês da cultura popular", diz Renato Mismetti, chamado pelo jornal Frankfurter Allgemeine de "grande embaixador" na divulgação internacional da canção de arte brasileira, da qual já foi também considerado um dos "supremos intérpretes". Os dois músicos radicados em Bremen agora buscam patrocínio para viabilizar a realização da série de concertos em 2006 no país de Bach.

Em seqüência aos programas de anos anteriores, que homenagearam poetas como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade e Cecília Meirelles, além de Hermann Hesse e outros europeus - os quais tiveram poemas musicados pelo melhor time de compositores eruditos contemporâneos, de Edino Krieger e Marlos Nobre a Gilberto Mendes, de Almeida Prado e Jorge Antunes a Kilza Setti, Osvaldo Lacerda e Ronaldo Miranda -, o projeto Travessia esboça uma ponte entre as culturas brasileira e alemã. Por exemplo, à prestigiada compositora Siegrid Ernst, de Bremen, coube musicar nada menos do que versos do poema Navio Negreiro, de Castro Alves, enquanto Jorge Antunes escreveu música sobre texto de mesmo título do alemão Heinrich Heine.

"Resgatar esse diálogo simbólico entre as duas culturas, que vem de alguns séculos, é um dos objetivos de nosso projeto e de sua dramaturgia", diz o aplaudido pianista Maximiliano de Brito, co-autor da "odisséia" que almeja mostrar a cultura brasileira muito além do futebol, do samba e da caipirinha. Vale lembrar que, depois da vinda do cronista Hans Staden, ainda no século 16, e da missão científica bávara no século 19, que trouxe ao Brasil Spix e Martius e, logo depois, Rugendas, dom Pedro II iria se tornar um dos grandes mecenas de Richard Wagner, enquanto Gonçalves Dias publicou originalmente em Leipzig seu livro Cantos e os primeiros poemas de Os Timbiras. Afora as marcas na própria música: Alberto Nepomuceno e Cláudio Santoro completaram sua formação na Alemanha, enquanto as ressonâncias de Bach em Villa-Lobos ecoarão para sempre.

Nesse rastro secular, Mismetti e Brito planejam abrigar nossa música de concerto contemporânea em espaços condignos do que se faz no Brasil também na esfera erudita. Como nos programas que o duo vem realizando desde 2000, os concertos deverão ser apresentados nas mais nobres salas de música da Alemanha. "É inconcebível que uma produção desse nível se contente com espaços alternativos ou salas de concerto periféricas", entoa o barítono.

Trunfos não faltam. O compositor Marlos Nobre já afirmou que as composições que escreveu especialmente para os concertos anteriores da série Poesia&Música incluem-se entre as mais importantes de toda a sua criação musical, enquanto Edino Krieger, também presidente da Academia Brasileira de Música, avalizou recentemente: "O projeto Poesia&Música - Sonoridades Brasileiras é uma das mais belas, sensíveis e eficazes iniciativas para a incrementação do repertório vocal e para a divulgação da cultura brasileira de que tenho conhecimento em minha longa trajetória profissional."