Pegue uns pratos pra lavar

Por Roberta Dalbuquerque

Fui tomada por um espanto discreto (como se espantos discretos fossem possíveis), enquanto lavava uma pia caótica e interminável de pratos. Não há situação que se agrave de maneira mais incontrolável do que a da louça por lavar. Começa com uma xícara, um garfo e um pratinho com inocentes farelos de bolo, até que se pisque o olho e já não seja possível achar uma faca limpa, um copo seco, dez milímetros livres de balcão. Todo um conjunto de louça, panelas e talheres disputando espaço anarquicamente na cozinha que você se prometeu arrumar ainda no momentos dos 3 primeiros itens. Quatro pontos são obrigatórios para tornar a tarefa possível: organização, coragem, disposição e música. 1. Há uma ordem certa para dar conta de uma pia. Já falei disso pra vocês, não? Do menos sujo para o mais sujo, primeiro os copos, por fim as panelas, tudo que vai no meio deve seguir esse raciocínio. 2. O trabalho só pode ser marcado como concluído, se feito na totalidade. Larga-se o avental com a pia seca e tudo guardado, cada coisa em seu lugar. Inclusive o escorredor – vazio, claro. Sem preguiça. 3. Li uma entrevista do Chico Buarque que, ao comentar sobre a dificuldade de ser tímido, em cima do palco e diante de uma platéia, dava como parte das soluções que foi pensando pra si, o figurino do show. Contou que costumava se apresentar com a roupa do corpo e que, pouco a pouco, passou a determinar o que vestir para essa ocasião. Assim funciona pra mim o avental. É como se ao vestí-lo, eu entendesse que sou capaz. Veste-se um personagem que está disposto. 4. Aqui entra o espanto. Eu ouvia Caetano, como quase sempre. Uma letra que amo e canto a plenos pulmões, imaginando ser quem dá o texto e não quem o escuta. Chama-se Mamãe Coragem e nela, sempre fui a filha. A minha filha, que entrava na cozinha para equilibrar mais um copo na pia, tentando disfarçar ser ela uma das autoras da desordem, cantou comigo a música que tocava alto. E chegou bem na parte que dizia: Mamãe, mamãe, não chore A vida é assim mesmo Eu fui embora Mamãe, mamãe, não chore Eu nunca mais vou voltar por aí Mamãe, mamãe, não chore A vida é assim mesmo Eu quero mesmo é isto aqui Ela saiu rindo da própria artimanha, talvez sem perceber o que tinha acabado de cantar. Deixou a mãe com o próximo verso. Mamãe, mamãe, não chore Pegue uns panos pra lavar Leia um romance Veja as contas do mercado Pague as prestações Ser mãe É desdobrar fibra por fibra Os corações dos filhos Seja feliz Seja feliz Fibra por fibra, corações que vão embora. Tempo que não volta por aqui, quereres próprios, desejos de felicidade com romances, boletos e louça por lavar. A vida é assim mesmo, e é bom que seja. Vamos nós, mães, com organização, coragem, disposição e música, um beijo preso na garganta e corações fora do peito.