Quando o passado é passado? - Viver Bem

Por Adriana Tanese Nogueira

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Das pessoas que não “superaram” o passado se diz que não sabem perdoar, ou que estão presas, que não são capazes de compreender e ir adiante. São olhadas com superioridade por quem “deixou pra lá”, “se esqueceu” e aparentemente não se identifica mais com o que aconteceu. Pessoas que trazem à tona eventos passados geralmente recebem olhares de reprovação e cansaço. Parecem ter problemas que as outras, mais “positivas”, não têm mais. Este quadro é, porém, simplista. Simplista é quem quer simplificar algo mais complexo, é racionalizar com “verdades” rapidinhas e superificias, de fácil digestão, mas com valor nutritivo zero. E, de fato, não explica absolutamente nada. Quem quiser entender, deve olhar bem de perto a realidade para evitar julgamentos apressados, opiniões maquiadas.

Todo evento gera consequências. Algumas delas prejudicam vidas alheias por anos a fio, criam situações que, por sua vez, dão vida a novas situações, obrigam a escolhas e a caminhos que podem, inclusive, afetar outras pessoas que nada têm a ver originariamente com o fato. É o efeito dominó. O que se chama de “passado” é, frequentemente, a pedra lançada no lago de nossa psique, de nossa vida, da sociedade na qual vivemos. O presente se encontra no círculo maior de ondas provocado por aquela primeira pedrinha. Como sustentar, então, que o passado ficou para trás quando suas consequências movimentam, direcionam e perturbam nossa vida até hoje?

Quando o passado está imbuído e ativo no presente, ele não é passado, é atualidade, verdade do instante. Compreender isso permite aquele entendimento das coisas que abre o caminho para a mudança. Ter conhecimento do desenvolvimento dos fatos, do porquê chegamos aqui e somos o que somos leva à verdadeira compreensão do presente. Não existe presente sem passado. É entendendo o desencadeamento dos eventos, reações, escolhas e etc, que adquirimos instrumentos para transformar o presente. Caso contrário, como a história demonstra estaremos condenados a repetir o passado. E não é isso mesmo que acontece? Quantos pais repetem com os filhos os abusos ou a desatenção sofridas na própria infância? Eles podem melhorar em alguns aspectos como, por exemplo, dar aos filhos a estabilidade econômica e a possibilidade de estudar que eles não tiveram. Por outro lado, podem continuar massacrando a autoestima dos mesmos assim como foi feito com a deles, e isso não por maldade, mas simplesmente porque não trabalharam essa questão em si mesmos, não a superaram. O ponto mais dolorido foi omitido e por este motivo seu poder de ação amplificou-se poderosamente.

Não tem como voltar atrás e desfazer o que foi feito, mas para o passado se tornar, de fato, passado e poder ser finalmente enterrado, deve-se fazer a ele justiça. Justiça aqui significa reconhecer erros e tentativas, limites e razões. Fazer justiça significa trazer à tona a verdade de fatos e sentimentos. Quem errou precisa reconhecer o erro. Quem sofreu precisa expressar seu sofrimento e ser ouvido. É muito comum que a pessoa que tem ressentimento não expressou sua mágoa ou não completamente, e aí essa mágoa fica guardada, envenenando a alma. Ela não a manifestou porque teve que sorrir amarelo diante de uma situação de injustiça descarada ou porque não está consciente do que sente, ou porque ninguém quer ouvi-la para não ter que encarar as próprias responsabilidades. Errar é humano. Muitas pessoas ressentidas e magoadas sentiriam-se aliviadas e prontas para o perdão se somente seus sentimentos fossem levados em consideração e respeitados.

Há passados que se repercutem tão fortemente no presente que na verdade o matam ou prejudicaram as possibilidades de beleza, amor, harmonia, paz, desenvolvimento, comunhão do presente. Inibiram ou até impediram as possibilidades que o presente tem a oferecer, assassinando as aberturas atuais e latentes que, porém, não conseguem ser aproveitadas porque o passado interfere, está ali, não somente na psicologia da pessoa mas na realidade que esse passado criou. Isso vale para para muitas situações que permanecem travadas anos a fio porque não foram destrinchadas e limpadas dos resquícios do lixo antigo.

O passado que permanece incomodando a vida atual é aquele passado que não foi digerido e continua sendo arrotado como uma feijoada estragada comida no dia anterior. É verdade que para enterrar o passado uma pessoa deve fazer as contas consigo mesma, tem de se analisar, compreender, acolher, falar primeiramente as verdades para si mesma. Isso é psicoterapia. Mas não basta. Vivemos em comunidade e somos seres sociais. Nossa vida acontece no meio dos outros e é com os outros que precisamos também fazer as contas. Não existe psicologia que se resolva toda dentro da cabeça isolada de um indivíduo.

Se existem situações que só podem ser resolvidas na subjetividade, há outras que necessitam de uma reunião coletiva onde todas as cartas são postas sobre a mesa. Transparência, honestidade. Isso é amor. Quanto mais trabalho interior tiver sido realizado antes dessa suposta “reunião”, mais fácil ela será e, portanto, não necessariamente tão dolorosa. O resultado dependerá em igual medida de todos e cada um dos membros. Somente assim, o passado pode, de fato, ser levado embora pelas águas novas do presente.