Sandra, Sandrinha

Por Roberta Dalbuquerque

Estou aqui sentada há mais de uma hora ao lado da minha filha mais nova que, mordendo o lábio inferior em total concentração, finaliza a lição de português. Desde o início da semana passada que a menina se dedica e fala - nossa, como fala - sobre o projeto. O pedido é o seguinte: encape o caderno da matéria usando imagens que representem o que você pensa sobre a vida. Os critérios? Há de ser criativo, honesto e preciso com a sua personalidade, há de ser caprichoso na finalização. As figuras escolhidas por Sofia vão de nuvens fofinhas, personagens de mangás a lagartixas e axolotls, um bichinho sobre o qual eu nunca tinha ouvido falar e que, segundo ela, sempre foi o seu favorito. Que exercício lindo, não? Pensar o que faz de você você. Que conjunto de imagens, preferências, curiosidades, representam quem se é hoje. Hoje, claro. Porque mudamos o tempo inteiro. Ainda mais quando se tem doze anos. Mas na verdade, para além da beleza do exercício, o que me chamou a atenção mesmo foi o que Sofi resolveu dizer de si. O que de lagartixa há nela? Não entendi. E perguntei, viu. "É que eu amo lagartixa mãe." Como pode? Quando eu tinha mais ou menos essa mesma idade, viajei com a família de uma amiga para a casa de praia que eles mantinham em São José da Coroa Grande. Eram umas quatro horas de carro de Recife até lá. Eu nunca tinha viajado com Roberta Cristina, minha companheira de escola desde o jardim da infância. Não é que eu não gostasse dela, ao contrário. É que os pais pareciam tão, tão bravos, que sempre que o convite surgia, eu criava um dor de barriga, de cabeça, de cotovelo, qualquer coisa que me servisse de desculpa para negá-lo. Pois nesse dia eu fui. É que o menininho, que eu paquerava então, tinha acabado de comprar uma casa na mesma praia e nos convidara para a primeira festa de garagem do lugar. Na verdade, não fui convidada, mas já que seria hóspede de Roberta Cristina - que também não me convidou naquele fim de semana, eu nunca aceitava mesmo, mas recebeu com a alegria o meu pedido de inclusão no passeio - não seria um problema aparecer. Aparecemos todas, Roberta Cristina, Danielle Brito e eu. Um trio daqueles bem grudadinhos. A festa foi um desastre. Rodrigo, o tal menino, pediu Sandra em namoro naquela noite, e tocou repetidas vezes Sandra, Sandrinha, um axé horroroso que fazia sucesso na época. Danielle Brito brigou com Roberta. Desgrudou. E eu engoli o choro até a hora que o pai bravo apareceu de camisa de pijama para nos buscar. Quando chegamos na casa, fui chorar no banheiro e, ao apertar o interruptor para acender a luz, senti o gelo tremelicante de uma lagartixa bebê que dormia ali, e, assustada, fugiu pelo meu braço, passeando da mão até quase a axila quando, finalmente, consegui aos pulos e aos gritos tirá-la do meu corpo. A mãe brava apareceu, ainda mais brava, para o "agora chega, todo mundo para a cama!". A única cama que dividimos as três no sábado difícil de minha pré-adolescência. Prometi ajudar a Sofi na hora de passar papel contact para proteger a capa do caderno - capricho, lembra? E daqui onde estou, não consigo tirar o olho do canto inferior esquerdo, de onde sorri para mim a lagartixa dela. E sou exatamente a mesma que fui aos doze. Só de pensar que vou encostar na figurinha logo mais, arrepio todas as células do meu corpo. Mas vamos nessa, com todo respeito a criatividade e honestidade da menina, e ao som de Sandra, Sandrinha que grudou na minha cabeça para todo o sempre, desde que lembrei de Rodrigo e de São José da Coroa grande. Deus me livre! Boa semana, queridos!