"Eu conheço a verdadeira Rafaelle" - testemunha fala sobre brasileira que deixou bebê em área de lixo

Uma amiga e uma defensora de vítimas contam sobre o que teria levado Rafaelle Sousa a se desfazer do recém-nascido.

Por Arlaine Castro

Rafaelle Sousa está detida desde 2019 acusada de tentativa de homicídio e agressão infantil.

"Eu conheço a verdadeira Rafaelle. As coisas teriam sido tão diferentes se ela soubesse que estava grávida. O bebê não chorou", afirmou a amiga próxima, que será testemunha da defesa no julgamento de Rafaelle Sousa, presa desde 2019 em West Palm Beach.

Em entrevista exclusiva ao Gazeta News, a amiga e outra brasileira que atua como defensora de vítimas pelo Immigrants Resource Center do sul da Flórida, contaram a versão da Rafaelle e os fatos anteriores à ação. Gravidez ectópica, susto, medo por ser imigrante indocumentada e confusão mental - o que a levou a deixar a recém-nascida numa sacola na área da lixeira em Boca Raton? 

"A outra gravidez ela também não sabia"

A amiga (cujo nome não pode ser revelado) conta que a gravidez do filho anterior (Noah, de quatro anos) também foi descoberta por acaso e o que o médico que fez o parto explicou por que Rafaelle não percebeu que estava grávida.

"Conheci a Rafa no salão onde ela fazia unha. A dona a ajudou desde que ela chegou aqui vinda do Brasil. Inclusive a primeira gravidez dela, foi essa dona do salão que descobriu e foi um susto pra todo mundo porque ela estava de oito meses e não sabia. Reclamou de dor na coluna e a dona do salão a levou ao médico, foi quando detectou a gravidez. Ela me ligou quando foi para o hospital e antes de eu chegar lá, o parto já havia acontecido. Como ela não fala inglês, eu conversei com o médico que fez o parto e também com o pediatra que estava cuidando da criança. Questionei como ela gerou sem perceber que estava grávida, como isso era possível? Ele me disse que era possível sim porque a criança estava na parte das costas (gravidez ectópica) e não na frente da barriga, como é normal, por isso ela não sentiu movimento ou percebeu a gravidez. Ela não aparentava que estava grávida. Em momento nenhum. Na época, ela era recém-chegada e ficou muito preocupada com o bebê. Inclusive agora, quando ela foi presa, eu pedi para a justiça apurar sobre esse outro parto dela, porque tem os registros lá do que o médico me falou sobre ser possível ela não saber que estava grávida. O médico deixou isso bem claro", relatou. 

Corrida e emagrecimento 

Outro ponto do susto, segundo a amiga, é que ela estava fazendo exercícios físicos e tinha conseguido emagrecer justamente nesse período da gravidez. 

"Por causa da dor na coluna por trabalhar sentada por muito tempo, ela falava que precisava se movimentar e começou a fazer kickboxing. Também começou a correr alguns dias da semana no início da manhã, bem cedinho. Ela estava gostando porque aliviava a dor nas costas e feliz porque tinha conseguido emagrecer. Eu só não fazia junto porque os meus horários não se encaixavam com o dela. Estava em uma parte feliz da vida dela que eu acompanhei e em nenhum momento ela sequer suspeitou que estivesse grávida. Na época, eu estava noiva e a tinha convidado para ser madrinha do meu casamento. Éramos muito próximas e estávamos felizes com nossas conquistas. Ela me ajudou a escolher o vestido de casamento das madrinhas. Uma das coisas mais marcantes que eu lembro disso tudo foi que, quando terminava de fazer minha unha, como eu era a última cliente às vezes, a gente saía para algum lugar, passava em alguma loja, antes de irmos para casa. Da penúltima vez, ela tirou o uniforme e trocou de roupa na minha frente e eu percebi como ela estava magra. Ela tinha emagrecido muito. Você não diria que ela estava grávida em hipótese alguma. Muito esquisito isso."

A outra filha 

"Durante esses anos aqui, ela fazia parte da igreja que eu frequento, é uma pessoa maravilhosa, muito prestativa, muito querida. Ela era minha manicure e minha amiga. E uma excelente mãe. Ela cuidava muito bem do Noah aqui e preocupava com a filha que mora no Brasil e é fruto do primeiro casamento dela. Uma das tristezas dela sempre foi o fato de não ter a filha aqui junto. Mas a menina tinha uns 10 anos quando ela veio e é muito ligada com os avós paternos e maternos e não quis vir para os EUA.
Ela era uma mãe que se importava bastante com os filhos. O consolo dela por ficar longe da filha que mora no Brasil é que ela estava fazendo de tudo para que a menina viesse um dia, nem que fosse a passeio e gostasse a ponto de querer ficar."

O choque

"Quando eu soube da tragédia e a vi na TV, fui correndo até a casa dela e cheguei no momento em que os policiais a estavam levando. Foi horrível, um pesadelo. Porque eu sabia que havia algo errado e ela não estava sabendo se defender. Como ela estava grávida? Como? Dentro de mim eu estava convicta de que aquilo era um engano. Como a gente não saberia que ela estava grávida? Da primeira vez teve a gravidez gerada nas costas, tudo bem, mas eu não a conhecia direito ainda, não éramos tão próximas. Desta vez, éramos mais amigas e eu a via praticamente todos os dias. Moro perto, nós nos falávamos diariamente. Eu a acompanhei no hospital quando o Noah precisou fazer uma cirurgia ainda pequeno, ela sempre foi muito zelosa com ele. Como ela não dirigia, geralmente eu a levava onde precisava, dava carona.
Eu conheço a verdadeira Rafaelle e ela não é esse monstro que a mídia apresenta. Ela diz que não sabia que estava grávida e eu acredito pelo fato de o médico ter dito pra mim que ela gerou o bebê nas costas. Fico muito triste e acredito de verdade que, se ela soubesse que estava grávida, tudo seria diferente. Já cheguei a falar isso pra ela: Se você sabia, por que você não me contou? Porque eu nunca a deixaria fazer uma doideira dessa. As coisas teriam sido tão diferentes se ela soubesse que ela estava grávida. A gente ia ficar feliz dela ter uma menina, seria uma alegria", detalhou a amiga. 

Bebê morto

"Ela me contou que quando a criança nasceu, ela se assustou. Ela disse que foi correr de manhã e sentiu dor de barriga. Foi pra casa e quando foi evacuar, tomou um susto porque saiu uma criança. Ela sentiu aquele impacto e quando viu o corpinho, imediatamente ligou o chuveiro e lavou ele. Como o bebê não chorou nem se mexeu, ela pensou que o tivesse matado no momento em que foi evacuar e ele caiu no vaso ou que ele nasceu morto. Ela ficou muito aterrorizada sem saber o que fazer. Ela lavou, mas a criança nada de chorar. Foi quando ela pensou que a criança estava mesmo morta e no meio de toda aquela confusão pensou que não havia mais o que fazer e iria se desfazer dela. Ela disse que o que passou pela cabeça dela foi medo de ser incriminada porque não acreditariam que ela não sabia que estava grávida e que ela deu luz à criança, mas nasceu morta. Ela estava muito nervosa e só pensava que tinha tido um aborto e matado a criança porque caiu direto no vaso", completa.

Confusão mental 

"É muito tenso, muito complicado, muito difícil. Quem vai saber mesmo só ela que estava nesse cenário. Eu perguntei a ela por que não me ligou, ela disse que passou mil coisas na cabeça. Como iria contar para alguém que estava com uma criança? Quem iria acreditar em mim? Eu disse a ela que eu iria até lá, a gente levaria a criança até um hospital porque não é a gente que faria o diagnóstico. Ela entrou em uma grande confusão mental de como iria explicar para as pessoas. Acredito que algo muito forte aconteceu na mente dela naquele momento porque depois ela quis parecer que não tinha tido um parto, que nada tinha acontecido. Na cabeça dela, ela teve um aborto espontâneo e foi trabalhar normalmente, continuou atendendo cliente durante o dia", disse a amiga. 

"Indocumentada, mulher e negra"

"Somos a voz da vítima. Trabalhamos com a imparcialidade, ouvindo o que ela tem a dizer. Apresentamos os fatos sem encobrir o que a pessoa fez, mas buscando uma defesa justa. Não podemos esquecer os fatos que a levaram a fazer o que fez", diz uma outra brasileira que vive nos EUA há 25 anos, atua como 'victim advocate' (defensor da vítima) pelo Immigrants Resource Center do sul da Flórida, e está ligada ao caso da  Rafaelle. 

"A lei dos Estados Unidos diz que todo homem que aqui vive é digno de respeito e merece justiça. Mas as leis foram e são criadas por homens americanos brancos. A lei não trata com justiça o imigrante, o negro, o índio, as mulheres. Rafaelle é imigrante indocumentada, é mulher e é negra. Houve caso semelhante ao dela com uma mulher branca americana que não foi condenada por homicídio. É sobre essa diferença de interpretação dos crimes e das leis que devemos nos atentar", ressalta.

A profissional explica que é preciso olhar para todos os lados quando se quer ter um julgamento justo e que há vários fatores que devem ser levados em conta. "A lei não se aplica da mesma maneira como para o americano. A lei dos Estados Unidos diz que todo homem que aqui vive é digno de respeito e merece justiça por igual. Mas as leis foram e são criadas por homens americanos brancos. A lei não trata com justiça o imigrante, o negro, o índio, as mulheres. Rafaelle é imigrante indocumentada, é mulher e é negra. Houve caso semelhante ao dela, no qual uma mulher jogou o feto na privada e deu descarga, mas ela não foi condenada por homicídio. Ela foi para um hospital psiquiátrico e depois libertada. É sobre essa diferença de interpretação dos crimes e das leis que devemos nos atentar", ressalta.

"Somos imigrantes. Se a gente não luta por justiça, a injustiça vai alcançar a gente também"

"Tem se falado mais sobre justiça contra negros atualmente. Mas sabemos que a justiça é falha e é, por muitas vezes, parcial. É sobre isso que precisamos falar. A justiça não é cega, surda ou muda. Ela enxerga muito bem o bolso, a cor da pele e o que lhe convém. Outro ponto para entender o caso da Rafaelle - quando ela foi detida, em 2019, era um governo federal republicano cuja agenda se pautava abertamente contra os imigrantes, principalmente os indocumentados. E essa agenda se refletia em todas as esferas, tanto federal, estadual ou municipal, com autoridades que adotavam uma linha não-imigrantes", analisa a defensora.

Cerca de 7% dos imigrantes nos EUA são negros. E os estimados 4,6 milhões de imigrantes negros do país enfrentam racismo e xenofobia em mais momentos durante a vida nos EUA. Os imigrantes negros são mais propensos a serem deportados do que os imigrantes de outras raças, de acordo com um relatório da Black Alliance for Just Immigration.

"Não podemos esquecer que, quando se trata de imigrantes, todos são representados, seja pelo lado bom ou pelo lado ruim. O sistema judiciário abrange imigrantes, mas está sempre especializando nessa área. E precisa entender. Por isso é bom ter advogados, juízes imigrantes. Para olhar sob a ótica também do imigrante. É preciso ouvir a versão do imigrante, o outro lado. O imigrante é uma pessoa que busca melhor condição de vida, seja onde for. A condição do ser humano é ser nômade. Ele sai em busca da sobrevivência. Ontem era pela comida, hoje, é pelo dinheiro, pela economia", pondera.

Pena capital, com fiança altíssima

No caso da Rafaelle, a victim advocate diz que ela recebeu a maior acusação possível e com fiança altíssima. "Tentativa de homicídio, mas a criança não morreu. Pelo contrário, está viva e saudável. É preciso entender o que a Rafaelle passou antes para entender por que ela fez aquilo. Ela não é má pessoa, não quis matar um bebê e isso a comunidade sabe. Muita gente que a conhece ficou em choque assim como ela. Era uma boa mãe, cuidava do filho, da família, trabalhava, era atuante na igreja. Não estamos falando de uma pessoa que demonstrava que mataria uma criança como é o que muitos brasileiros falam e desse modo reforçam o estigma da mulher negra, imigrante e indocumentada de ser má, como se ela fosse cometer um crime em algum momento aos olhos da justiça americana", afirma.

Estado puerperal

"A Rafaelle estava em estado puerperal. E isso poucas pessoas sabem o que é. Uma gravidez mexe com o organismo todo da mulher e sabemos disso porque já foi cientificamente comprovado. Há queda de hormônio, alterações de humor, várias coisas que interferem na saúde tanto física quanto mental da mulher. Ela disse que não sabia que estava grávida, não sentiu que teria um bebê em nenhum momento. Isso acontece e deve ser levado em conta também. Por exemplo, poucas pessoas sabiam que ela corria. E como sempre fazia, saiu para correr no início daquela manhã, por volta de 5 horas. Durante uns 20 minutos de corrida, sentiu cólica e voltou para casa. Pensou mesmo que fosse cólica normal, como todas as mulheres sentem no período menstrual, e ficou deitada no sofá para ver se passava. Não quis acordar o marido. Foi ao banheiro umas duas vezes com dor de barriga, teve diarreia. Nesse momento, o bebê nasceu. Ela se assustou, não sabia o que pensar, ficou com medo. Não chorou, achou que o bebê estava morto".

O bebê não chorou

"Ele estava roxo, com as extremidades frias e não chorou em nenhum momento. Esperou por horas, mas não houve reação. Ela, imigrante indocumentada, ficou com medo. Ia fazer o quê? Questionaram por que ela não levou para algum ponto onde se pode deixar um recém-nascido para adoção na Flórida, como em Corpo de Bombeiro ou hospital. Mas a resposta é: como ela pensaria nisso se o bebê não chorou? Se ela pensou que ele estivesse morto? Caso tivesse chorado, apesar do susto, a história seria outra.
Outro ponto a ser entendido é: Ela não "jogou o bebê no lixo". Ela não o jogou e nem foi dentro do lixo como disseram. Ela deixou a sacola na área do 'dumpster' porque a criança não chorou. Para ela, estava morta, não havia o que fazer. A sacola foi colocada no chão longe dos tambores de lixo e onde não havia mais nada. Tem diferença nos atos", explica a defensora.  

 Júri popular

Rafaelle permanece detida na cadeia de Palm Beach desde sua prisão, em maio de 2019. Nenhuma data de julgamento foi definida. Ela deve ir a júri popular e vai responder por acusações de tentativa de homicídio e abuso infantil.

*Os nomes das entrevistadas não foram revelados por estarem diretamente ligados ao julgamento.

Victim advocate- Função prevista em lei nos EUA, o defensor da vítima trabalha com outras organizações, como justiça criminal ou agências de serviço social, para obter ajuda ou informações para as vítimas. O profissional interage de perto com as vítimas de crime e as apóia de várias maneiras. Ele oferece uma ampla gama de serviços, de assistência jurídica a ajuda emocional. Geralmente tem formação em justiça criminal, serviço social ou área semelhante, além de experiência no trabalho com indivíduos que passam por circunstâncias traumáticas.

Leia também

“EU SÓ QUERO CRIAR MEUS FILHOS”, DIZ BRASILEIRO PAI DE MENINA ABANDONADA EM ÁREA DE LIXO