Impossível escalar uma seleção brasileira da música, com tanta gente para apenas 11 posições. Talvez Pixinguinha comandando, Tom Jobim no gol, uma zaga velha-guarda, um meio-campo entre tropicalistas e bossanovistas, Roberto Carlos ou Rita Lee fazendo a ligação com a frente... Mas uma boa aposta de dupla de ataque, de futebol brasileríssimo, seria Chico Buarque e Zeca Pagodinho. Se lado a lado no papel os dois nomes prometem, no campo (ou melhor, no estúdio) eles mostram que a troca de passes é redonda. O responsável pelo recente encontro, inédito até então em disco, é Hermínio Bello de Carvalho, outro craque, que acaba de ter parte de sua obra lançada na caixa ''Timoneiro'' (Biscoito Fino) - uma homenagem aos seus 70 anos. O dueto de Chico e Zeca está num dos CDs da caixa, também chamado ''Timoneiro''.
A faixa que registra o encontro é "Mulher faladeira", uma letra deliciosamente venenosa e divertida de Hermínio para a música de dois Maurícios, Tapajós e Carrilho. Com autoridade de autor e dono da bola (e estilo de poeta), Hermínio comenta a atuação da dupla no estúdio.
- Chico e Zeca viram duas crianças, dessas que fazem diabruras quando se juntam para jogar diabolô ou fazer rodar uma piorra. E como trabalham com as palavras também com muito humor, pode-se imaginar o que não pôde ser aproveitado no disco - atiça Hermínio, que em suas sete décadas de vida assinou parcerias com Pixinguinha, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e Chico Buarque, entre outros, além de ter apresentado ao mundo Clementina de Jesus.
Ouvindo a gravação, realmente pode-se imaginar o que ficou fora, mas há pouco o que lamentar. Ao longo do samba, Chico e Zeca desfilam a classe da divisão maliciosa e do humor na medida certa em versos como "Antes que eu te dê com um pé na bunda/ Bruaca, chifruda/ Nem vem me aprontar outro fuzuê/ Furdúncio tem hora de terminar/ Baranga, penosa, te arranca/ Seu tempo o juiz apitou/ O jogo faz tempo já terminou". No fim, como Chico já fizera antes com Moreira da Silva ("Doze anos") e Zeca com seu xará Baleiro ("Samba do approach"), os dois fazem um descontraído diálogo: "O que é que é furdúncio, Zeca?", começa Chico. Zeca, depois, "resenha" a tal "Mulher faladeira": "Só sei que ela fala mais que cego na chuva, vagabundo".
- Aquela conversa surgiu naturalmente - conta Zélia Duncan, que produziu, ao lado de Bia Paes Leme, o CD no qual "Mulher faladeira" está incluído. - É uma característica do samba, do pagode. Em outra faixa, Mart'nália e Moska também travam um diálogo do mesmo tipo.
Foi de Zélia a idéia de juntar Chico e Zeca, aceita de imediato por Hermínio e pela dupla - "Eles se amarraram de cara", lembra a cantora. No estúdio, o entrosamento foi rápido. Mas, como conta a produtora, cada um com seu estilo.
- Não sei se as pessoas sabem disso, mas Zeca costuma chegar adiantadíssimo em seus compromissos. A gravação estava marcada para as 16h, ele chegou às 12h30. Tive o prazeroso dever de entretê-lo enquanto ele ia aprendendo a música, ali mesmo, no estúdio, no melhor estilo "Deixa a vida me levar". Chico chegou às 16h10, já veio estudado. O encontro foi rápido, eles entraram, gravaram e ficou aquela maravilha.
"Mulher faladeira" foi garimpada nos arquivos de Hermínio, sem letra, numa fita cassete.
- A música já sugeria algo bem solto, com uma levada de humor - conta Hermínio. - Não existe uma musa específica, mas um vitral onde misturo o mau humor da velha Yolanda Bunda-de-Panda (uma ex-empregada que era mesmo do tipo mulher faladeira) com a exuberância verbal de Carminha Rica, que aliás dicionarizou bastante a minha vida com seus ditos maliciosos. Mas nenhuma das duas, ressalve-se, tinha o mau caráter do personagem do samba.