Nos anos 80, Heloisa Schurmann enfrentou 10 anos no mar, dando a volta ao mundo num veleiro com o marido e três filhos pequenos, de 7, 10 e 15 anos. Mas nenhum temporal assustou-a tanto quanto a tempestade pessoal que viveu em 2006, quando perdeu sua filha adotiva, Katherine.
Kat nasceu com o vírus HIV e morreu de uma parada cardíaca, aos 13 anos, por complicações da doença.
Mas foi sua vida, 10 anos ao lado da família Schurmann, que mudou o percurso do vento espiritual de Heloisa, a matriarca dos velejadores brasileiros, apelidada carinhosamente de “formiga atômica”.
“Minha irmã diz assim, ‘você conseguiu dar a volta ao mundo, e o que mais te tirou o tapete de baixo é que você não conseguiu com que a Kat vivesse’. E isso realmente é uma coisa que aprendi”, diz ela. “Você não tem o controle do seu destino”.
E, agora, é essa lição de desapego afetivo e tolerância que a navegadora e escritora está levando ao mundo com seu novo livro, “Pequeno Segredo: A lição de vida de Kat para a família Schurmann”, publicado no Brasil e, semana passada lançado, na galeria do artista Romero Britto, em Miami - a primeira noite de autógrafos fora do país e onde ela viveu intensos momentos com sua filha.
“Miami era o centro de tratamento dela”, diz Heloisa, que se lembra como se fosse ontem cada ajuste dos remédios, os famosos “coquetéis da AIDS”.
Ela conta que uma vez Kat começou a vomitar em plena I-95, uma via rápida aqui. Heloisa foi acalmando-a com palavras de carinho e compreensão até conseguir parar o carro num posto de gasolina para abraçá-la e limpar o automóvel.
“Ela ficava bem seis meses, um ano, e começava a baixar a imunidade e tinha que trocar de remédio”, diz Heloisa, que manteve o segredo de Kat guardado a sete chaves até pouco antes dela falecer, com o intuito de protege-la contra preconceitos em relação a AIDS.
A direção de uma escola uma vez deixou claro que se a condição de Katherine chegasse ao ouvido de pais e houvesse alguma reclamação, a menina teria que parar de frequentar as aulas imediatamente.
Quando Kat finalmente soube da verdadeira razão porque se sentia às vezes enfraquecida e tinha que tomar tantas “vitaminas”, ela disse que aos 14 anos queria contar para o mundo que era soropositiva e poder fazer a diferença com sua história. “Eu dizia, ‘vai ser uma barra’. E ela falava, ‘não faz mal. Eu já aprendi a viver com a barra’”, diz Heloisa.
E assim Kat foi mantendo um diário, que hoje faz parte desse livro, dessa história que ela nunca pôde contar, mas que se tornou uma missão para sua madrasta, que ela chamava de “mommy”, seu padrasto, Vilfredo, que era o “daddy”, e os três irmãos, Pierre, Wilhelm e David, diretor de cinema que está trabalhando no seu primeiro filme de ficção, que deve ser lançado no próximo ano e também vai contar uma história semelhante: de uma menina portadora do vírus HIV e que transformou a vida de uma família brasileira.
Na primeira expedição ao mundo da família Schurmann, David tinha 10 anos. Com 13, já filmava e, com 16, começou a trabalhar no ramo. Durante a viagem, ele decidiu ficar em terra para cursar uma faculdade de cinema na Nova Zelândia, onde a família conheceu os pais de Kat.
Foi a bandeira do Brasil no barco dos Shurmann que aproximou as famílias.
Robert, neozelandês, também um velejador assíduo, havia se apaixonado por Jeanne no Brasil. Mas antes de se casarem, ela foi atropelada e, numa transfusão de sangue, adquiriu o vírus HIV, que sem saber, transmitiu ao marido e à filha.
Após a morte de Jeanne, Roberto procurou os brasileiros e acabou contando a historia, e deixando Kat nas mãos dos amigos, antes dele morrer.
O filme Pequeno Segredo vai contar a história desses encontros e fatalidades, mas em forma de ficção. O roteiro é de Marcos Bernstein, roteirista de “Central do Brasil” e “Chico Xavier”.
O cineasta, hoje com 38 anos, diz que o filme não é um “melodrama” e vai deixar uma sensação positiva no fim.
“É triste, mas você sai querendo valorizar mais sua vida”, diz ele. “Não é quanto tempo você tem de vida, mas o que você faz com ela que conta. Fica a dor, a tristeza, mas a vida continua. O sol vai nascer e o vento vai soprar”.
E é justamente esse sentido de desapego emocional que se tornou a maior lição de vida que Kat deixou para Heloisa.
“A passagem da Kat para outro mundo me ensinou que a vida é um desapego muito grande”, diz Heloisa, que demorou seis anos para conseguir colocar em palavras esse sentimento tão profundo.
“A Kat apareceu na nossa vida e realmente foi um presente. Ela acendeu uma luz”, diz Heloisa, que adotou a menina em 1995, quando ela tinha três anos. “Ela me ensinou a lição do amor incondicional. Independentemente de quem você é, de como você é, você aceita aquela pessoa no seu coração”.
E essa lição se tornou sua missão hoje em dia, uma missão adotada por todos os membros dessa família de navegadores brasileiros, que saem em novembro numa nova volta ao mundo, no que estão chamando de Expedição Oriente. Eles saem de Itajaí, em Santa Catarina, e devem ficar no mar dois anos.
Nova Zelândia, mais uma vez, faz parte do trajeto.
As vendas do livro em Miami vão beneficiar a entidade de caridade “Natal de Renata”, em Pernambuco, e o Instituto Kat Schurmann, em Santa Catarina. Para saber mais sobre as aventuras da família Schurmann, visite: http://www.schurmann.com.br.
Por Chris Delboni, colunista do Portal iG*
*Essa reportagem foi publicada originalmente na coluna Direto de Miami, do Portal iG www.colunistas.ig.com.br/diretodemiami

